Documento de Aparecida
V Conferência Geral do Episcopado Latino Americano e do Caribe
Aparecida, 13-31 de maio de 2007
Documento Final
Introdução
1. Com a luz do Senhor ressuscitado e com a força do Espírito Santo, nós os bispos da América nos reunimos em Aparecida, Brasil, para celebrar a V Conferência Geral do Episcopado Latino Americano e do Caribe. Fizemos isso como pastores que querem seguir estimulando a ação evangelizadora da Igreja, chamada a fazer de todos os seus membros discípulos e missionários de Cristo, Caminho, Verdade e Vida para que nossos povos tenham vida n’Ele. Fazemos isso em comunhão com todas as Igrejas locais presentes na América. Maria, Mãe de Jesus Cristo e de seus discípulos, tem estado muito perto de nós, tem-nos acolhido, tem cuidado de nós e de nossos trabalhos, amparando-nos, como a João Diego e a nossos povos, na dobra de seu manto, sob sua maternal proteção. Temos pedido a ela, como mãe, perfeita discípula e pedagoga da evangelização, que nos ensine a ser filhos em seu Filho e a fazer o que Ele nos disser (cf. Jo 2,5).
2. Com alegria estivemos reunidos com o Sucessor de Pedro, Cabeça do Colégio Episcopal. Sua Santidade Bento XVI confirmou-nos no primado da fé em Deus, de sua verdade e amor, para o bem das pessoas e dos povos. Agradecemos a todos os seus ensinamentos, que foram iluminação e guia seguro para nossos trabalhos, especialmente, seu Discurso inaugural. A lembrança agradecida dos últimos Papas, e em especial por seu rico Magistério que têm estado também presente em nossos trabalhos, merece especial memória e gratidão.
3. Sentimo-nos acompanhados pela oração de nosso povo católico, representado visivelmente pela companhia do Pastor e dos fiéis da Igreja de Deus em Aparecida e pela multidão de peregrinos de todo Brasil e de outros países da América ao Santuário, que nos edificaram e evangelizaram. Na comunhão dos santos, tivemos presente todos aqueles que nos antecederam como discípulos e missionários na vinha do Senhor e especialmente a nossos santos latino-americanos, entre eles Santo Toríbio de Mogrovejo, patrono do Episcopado latino-americano.
4. O Evangelho chegou a nossas terras em meio a um dramático e desigual encontro de povos e culturas. As “sementes do Verbo”1 presentes nas culturas autóctones, facilitaram a nossos irmãos indígenas encontrarem no Evangelho respostas vitais às suas aspirações mais profundas: “Cristo era o Salvador que esperavam silenciosamente”2. A visitação de Nossa Senhora de Guadalupe foi acontecimento decisivo para o anúncio e reconhecimento de seu Filho, pedagogia e sinal de inculturação da fé, manifestação e renovado ímpeto missionário de propagação do Evangelho3.
5. Desde a primeira evangelização até os tempos recentes a Igreja tem experimentado luzes e sombras4. Ela escreveu páginas de nossa história com grande sabedoria e santidade. Sofreu também tempos difíceis, tanto por perseguições como pelas debilidades, compromissos mundanos e incoerências, em outras palavras, pelo pecado de seus filhos, que confundiram a novidade do Evangelho, a luminosidade da verdade e a prática da justiça e da caridade. No entanto, o mais decisivo na Igreja é sempre a ação santa de seu Senhor.
6. Por isso, diante de tudo damos graças a Deus e o louvamos por tudo o que nos tem sido dado. Acolhemos a toda a realidade do Continente como um dom: a beleza e fecundidade de suas terras, a riqueza de humanidade que se expressa nas pessoas, famílias, povos e culturas do Continente. Sobretudo, nos tem sido dado Jesus Cristo, a plenitude da revelação de Deus, um tesouro incalculável, a “pérola preciosa” (cf. Mt 13,45-46). Verbo de Deus feito carne, Caminho, Verdade e Vida dos homens e das mulheres aos quais abre um destino de plena justiça e felicidade. Ele é o único Libertador e Salvador que, com sua morte e ressurreição, rompeu as cadeias opressivas do pecado e da morte, revelando o amor misericordioso do Pai e a vocação, dignidade e destino da pessoa humana.
7. As maiores riquezas de nossos povos são a fé no Deus de amor e a tradição católica na vida e na cultura. Manifesta-se na fé madura de muitos batizados e na piedade popular que expressa “o amor a Cristo sofredor, o Deus da compaixão, do perdão e da reconciliação (...), o amor ao Senhor presente na Eucaristia (...), - o Deus próximo dos pobres e dos que sofrem, - a profunda devoção à Santíssima Virgem de Guadalupe, de Aparecida ou dos diversos nomes nacionais e locais”5. Expressa-se também na caridade que em todas as partes anima gestos, obras e caminhos de solidariedade para com os mais necessitados e desamparados. Está presente também na consciência da dignidade da pessoa, na sabedoria diante da vida, na paixão pela justiça, na esperança contra toda esperança e na alegria de viver que move o coração de nosso povo, ainda que em condições muito difíceis. As raízes católicas permanecem na arte, linguagem, tradições e estilo de vida do povo, ao mesmo tempo dramático e festivo e no enfrentamento da realidade. Por isso, o Santo padre nos responsabilizou ainda mais, como Igreja, da “grande tarefa de proteger e alimentar a fé do povo de Deus”6.
8. O dom da tradição católica é um cimento fundamental de identidade, originalidade e unidade da América latina e do caribe: uma realidade histórico-cultural, marcada pelo Evangelho de Cristo, realidade na qual abunda o pecado – abandono de Deus, comportamentos viciosos, de opressão, violência, ingratidões e misérias – porém, onde superabunda a graça da vitória pascal. Nossa Igreja goza, não obstante as debilidades e misérias humanas, de um alto índice de confiança e de credibilidade por parte do povo. A Igreja é morada de povos irmãos e casa dos pobres.
9. A V Conferência do Episcopado Latino-americano e Caribenho é um novo passo no caminho da Igreja, especialmente desde o Concílio Ecumênico Vaticano II. Ela dá continuidade e, ao mesmo tempo, recapitula o caminho de fidelidade, renovação e evangelização da Igreja latino-americanas a serviço de seus povos, que se expressou oportunamente nas Conferências Gerais anteriores do Episcopado (Rio, 1955; Medellín, 1968; Puebla, 1979; Santo Domingo, 1992). Em todas elas reconhecemos a ação do Espírito. Também nos lembramos da Assembléia Especial do Sínodo dos Bispos para América (1997).
10. Esta V Conferência se propõe “à grande tarefa de conservar e alimentar a fé do povo de Deus e recordar também aos fiéis deste continente que, em virtude de seu batismo, são chamados a serem discípulos e missionários de Jesus Cristo”7. Com desafios e exigências, abre-se passagem para um novo período da história, caracterizado pela desordem generalizada que se propaga por novas turbulências sociais e políticas, pela difusão de uma cultura distante e hostil à tradição cristã e pela emergência de variadas ofertas religiosas que tratam de responder, a sua maneira, à sede de Deus que nossos povos manifestam.
11. A Igreja é chamada a repensar profundamente e a relançar com fidelidade e audácia sua missão nas novas circunstâncias latino-americanas e mundiais. Ela não pode fechar-se àqueles que trazem confusão, perigos e ameaças ou àqueles que pretendem cobrir a variedade e complexidade das situações com uma capa de ideologias gastas ou de agressões irresponsáveis. Trata-se de confirmar, renovar e revitalizar a novidade do Evangelho arraigada em nossa história, a partir de um encontro pessoal e comunitário com Jesus Cristo, que desperte discípulos e missionários. Isso não depende de grandes programas e estruturas, mas de homens e mulheres novos que encarnem essa tradição e novidade, como discípulos de Jesus Cristo e missionários de seu reino, protagonistas de uma vida nova para uma América Latina que deseja se reconhecer com a luz e a força do Espírito.
12. Uma fé católica reduzida a conhecimento, a um elenco de algumas normas e de proibições, a práticas de devoção fragmentadas, a adesões seletivas e parciais das verdades da fé, a uma participação ocasional em alguns sacramentos, à repetição de princípios doutrinais, a moralismos brandos ou crispados que não convertem a vida dos batizados, não resistiria aos embates do tempo. Nossa maior ameaça “é o medíocre pragmatismo da vida cotidiana da Igreja na qual, aparentemente, tudo procede com normalidade, mas na verdade a fé vai se desgastando e degenerando em mesquinhez”8. A todos nos toca “recomeçar a partir de Cristo”9, reconhecendo que “não se começa a ser cristão por uma decisão ética ou uma grande idéia, mas pelo encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá um novo horizonte à vida e, com isso, uma orientação decisiva”10.
13. Na América Latina e no Caribe, quando muitos de nossos povos se preparam para celebrar o bi-centenário de sua independência, encontramo-nos diante do desafio de revitalizar nosso modo de ser católico e nossas opções pessoais pelo Senhor, para que a fé cristã se estabeleça mais profundamente no coração das pessoas e dos povos latino-americanos como acontecimento fundante e encontro vivificante com Cristo, manifestado como novidade de vida e de missão de todas as dimensões da existência pessoal e social. Isto requer, a partir de nossa identidade católica, uma evangelização muito mais missionária, em diálogo com todos os cristãos e a serviço de todos os homens. Do contrário, “o rico tesouro do Continente Americano... seu patrimônio mais valioso: a fé no Deus de amor...”11 corre os risco de seguir desgastando-se e diluindo-se de maneira crescente em diversos setores da população. Hoje se considera escolher entre caminhos que conduzem à vida ou caminhos que conduzem à morte (cf. Dt 30.15). Caminhos de morte são os que levam a dilapidar os bens que recebemos de Deus através daqueles que nos precederam na fé. São caminhos que traçam uma cultura sem Deus e sem seus mandamentos ou inclusive contra Deus, animada pelos ídolos do poder, da riqueza e do prazer efêmero, a qual termina sendo uma cultura contra o ser humano e contra o bem dos povos latino-americanos. Os caminhos de vida verdadeira e plena para todos, caminhos de vida eterna, são aqueles abertos pela fé que conduzem à “plenitude de vida que Cristo nos trouxe: com esta vida divina, também se desenvolve em plenitude a existência humana, em sua dimensão pessoal, familiar, social e cultural”12. Essa é a vida que Deus nos participa por seu amor gratuito, porque “é o amor que dá a vida”13. Estes caminhos frutificam nos dons de verdade e de amor que nos foram dados em Cristo, na comunhão dos discípulos e missionários do Senhor, para que América Latina e Caribe sejam efetivamente um continente no qual a fé, a esperança e o amor renovem a vida das pessoas e transformem as culturas dos povos.
14. O Senhor nos disse: “não tenham medo” (Mt 28,5). Como às mulheres na manhã da Ressurreição nos é repetido: “Por que buscam entre os mortos aquele que está vivo?” (Lc 24,5). Os sinais da vitória de Cristo ressuscitado nos estimulam enquanto suplicamos a graça da conversão e mantemos viva a esperança que não defrauda. O que nos define não são as circunstâncias dramáticas da vida, nem os desafios da sociedade ou as tarefas que devemos empreender, mas todo o amor recebido do Pai, graças a Jesus Cristo pela unção do Espírito Santo. Esta prioridade fundamental é a que tem presidido todos os nossos trabalhos que oferecemos a Deus, à nossa Igreja, a nosso povo, a cada um dos latino-americanos, enquanto elevamos ao Espírito Santo nossa súplica para que redescubramos a beleza e a alegria de ser cristãos. Aqui está o desafio fundamental que contrapomos: mostrar a capacidade da Igreja de promover e formar discípulos que respondam à vocação recebida e comuniquem em todas as partes, transbordando de gratidão e alegria, o dom do encontro com Jesus Cristo. Não temos outro tesouro a não ser este. Não temos outra felicidade nem outra prioridade que não seja sermos instrumentos do Espírito de Deus na Igreja, para que Jesus Cristo seja encontrado, seguido, amado, adorado, anunciado e comunicado a todos, não obstante todas as dificuldades e resistências. Este é o melhor serviço – seu serviço! – que a Igreja tem que oferecer às pessoas e nações14.
15. Nesta hora em que renovamos a esperança, queremos fazer nossas as palavras de SS. Bento XVI no início de seu Pontificado, fazendo eco a seu predecessor, o Servo de Deus, João Paulo II, e proclamá-las para toda a América Latina: Não temam! Abram, abram de par em par as portas a Cristo!... quem deixa Cristo entrar a não perde nada, nada – absolutamente nada – do que faz a vida livre, bela e grande. Não! Só com esta amizade abrem-se as portas da vida. Só com esta amizade abrem-se realmente as grandes potencialidades da condição humana. Só com esta amizade experimentamos o que é belo e o que nos liberta... Não tenham medo de Cristo! Ele não tira nada e nos dá tudo. Quem se dá a Ele, recebe cem por um. Sim, abram, abram de par em par as portas a Cristo e encontrarão a verdadeira vida15.
16. “Esta V Conferência Geral celebra-se em continuidade com as outras quatro que a precederam no Rio de Janeiro, Medellín, Puebla e Santo Domingo. Com o mesmo espírito que as animou, os pastores querem dar agora um novo impulso à evangelização, a fim de que estes povos sigam crescendo e amadurecendo em sua fé, para serem luz do mundo e testemunhas de Jesus Cristo com sua própria vida”16. Como pastores da Igreja estamos conscientes de que “depois da IV Conferência Geral, em Santo Domingo, muitas coisas mudaram na sociedade. A Igreja, que participa dos gozos e esperanças, das tristezas e alegrias de seus filhos, quer caminhar ao seu lado neste período de tantos desafios, para infundir-lhes sempre esperança e consolo”17.
17. Nossa alegria, portanto, baseia-se no amor do Pai, na participação no mistério pascal de Jesus cristo que, pelo Espírito Santo, faz-nos passar da morte para a vida, da tristeza para a alegria, do absurdo para o sentido profundo da existência, do desalento para a esperança que não engana. Esta alegria não é um sentimento artificialmente provocado nem um estado de ânimo passageiro. O amor do Pai nos foi revelado em Cristo que nos convida a entrar em seu reino. Ele nos ensinou a orar dizendo “Abba, Pai” (Rm 8,15; cf. Mt 6,9).
18. Conhecer a Jesus Cristo pela fé é nossa alegria; segui-lo é uma graça, e transmitir este tesouro aos demais é uma tarefa que o Senhor, ao nos chamar e nos eleger, nos confiou. Com os olhos iluminados pela luz de Jesus Cristo ressuscitado podemos e queremos contemplar o mundo, a história, os nossos povos da América Latina e do Caribe e cada um de seus habitantes.
PRIMEIRA PARTE
A VIDA DE NOSSOS POVOS HOJE
19. Em continuidade com as Conferências Gerais anteriores do Episcopado Latino-americano, este documento faz uso do método “ver, julgar e agir”. Este método implica em contemplar a Deus com os olhos da fé através de sua Palavra revelada e o contato vivificador dos Sacramentos, a fim de que, na vida cotidiana, vejamos a realidade que nos circunda à luz de sua providência e a julguemos segundo Jesus Cristo, Caminho, Verdade e Vida, e atuemos a partir da Igreja, Corpo Místico de Cristo e Sacramento universal de salvação, na propagação do Reino de Deus, que se semeia nesta terra e que frutifica plenamente no Céu. Muitas vozes, vindas de todo o Continente ofereceram contribuições e sugestões nesse sentido, afirmando que este método tem colaborado para que vivamos mais intensamente nossa vocação e missão na Igreja: tem enriquecido nosso trabalho teológico e pastoral e, em geral, tem-nos motivado a assumir nossas responsabilidades diante das situações concretas de nosso continente. Este método nos permite articular, de modo sistemático, a perspectiva cristã de ver a realidade; a assunção de critérios que provêm da fé e da razão para seu discernimento e valorização, com sentido crítico; e, em conseqüência, a projeção do agir como discípulos missionários de Jesus Cristo. A adesão crente, alegre e confiada no Deus Pai, Filho e Espírito Santo e a inserção eclesial, são pressupostos indispensáveis que garantem a eficácia deste método18.
CAPÍTULO 1
OS DISCÍPULOS MISSIONÁRIOS
20. Nossa reflexão a respeito do caminho das Igrejas da América Latina e do Caribe tem lugar em meio à luzes e sombras de nosso tempo. Afligem-nos, mas não nos confundem, as grandes mudanças que experimentamos. Temos recebido dons incalculáveis, que nos ajudam a olhar a realidade como discípulos missionários de Jesus Cristo.
21. A presença cotidiana e cheia de esperança de incontáveis peregrinos nos lembra dos primeiros seguidores de Jesus Cristo que foram ao Jordão, onde João batizava, com a esperança de encontrar o Messias (cf. Mc 1,5). Eles se sentiram atraídos pela sabedoria das palavras de Jesus, pela bondade de seu trato e pelo poder de seus milagres. E pelo assombro inusitado que a pessoa de Jesus despertava, acolheram o dom da fé e vieram a ser discípulos de Jesus. Ao sair das trevas e das sombras de morte (cf. Lc 1,79) a vida deles adquiriu uma plenitude extraordinária: a de haver sido enriquecida com o dom do Pai. Viveram a história de seu povo e de seu tempo e passaram pelos caminhos do Império Romano, sem esquecer o encontro mais importante e decisivo de sua vida que os havia preenchido de luz, de força e de esperança: o encontro com Jesus, sua rocha, sua paz, sua vida.
22. Assim também nos ocorre olhar a realidade de nossos povos e de nossa Igreja, com seus valores, suas limitações, suas angústias e esperanças. Enquanto sofremos e nos alegramos, permanecemos no amor de Cristo, vendo nosso mundo e procurando discernir seus caminhos com a alegre esperança e a indizível gratidão de crer em Jesus Cristo. Ele é o Filho de Deus verdadeiro, o único Salvador da humanidade. A importância única e insubstituível de Cristo para nós, para a humanidade, consiste em que Cristo é o caminho, a Verdade e a Vida. “Se não conhecemos a Deus em Cristo e com Cristo, toda a realidade se torna um enigma indecifrável; não há caminho e, ao não haver caminho, não há vida nem verdade”19. No clima cultural relativista que nos circunda, onde é aceita só uma religião natural, faz-se sempre mais importante e urgente estabelecer e fazer amadurecer em todo o corpo eclesial a certeza de que Cristo, o Deus de rosto humano, é nosso verdadeiro e único salvador.
23. Neste encontro, queremos expressar a alegria de sermos discípulos do Senhor e de termos sido enviados com o tesouro do Evangelho. Ser cristão não é uma carga, mas um dom: Deus Pai nos abençoou em Jesus Cristo seu Filho, Salvador do mundo.
1.1. Ação de graças a Deus
24. Bendito seja Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou com toda sorte de bênçãos na pessoa de Cristo (cf. Ef 1,3). O Deus da Aliança, rico em misericórdia, nos amou primeiro; imerecidamente amou a cada um de nós; por isso o bendizemos, animados pelo Espírito Santo, Espírito vivificador, alma e vida da Igreja. Ele, que foi derramado em nossos corações, geme e intercede por nós e, com seus dons nos fortalece em nosso caminho de discípulos e missionários.
25. Bendizemos a Deus com ânimo agradecido, porque nos chamou para sermos instrumentos de seu reino de amor e de vida, de justiça e de paz, pelo qual tantos se sacrificaram. Ele mesmo nos encomendou a obra de suas mãos para que cuidemos dela e a coloquemos a serviço de todos. Agradecemos a Deus por nos fazer seus colaboradores para que sejamos solidários com sua criação pela qual somos responsáveis. Bendizemos a Deus que nos deu a natureza criada que é seu primeiro livro para possamos conhecer a Ele e viver nela como em nossa casa.
26. Damos graças a Deus que nos deu o dom da palavra, com a qual podemos nos comunicar entre nós e com Ele por meio de seu Filho, que é sua Palavra (cf. Jo 1,1). Damos graças a Ele que, por seu grande amor fala a nós como a amigos (cf. Jo 15,14-15). Bendizemos a Deus que se nos dá na celebração da fé, especialmente na Eucaristia, pão de vida eterna. A ação de graças a Deus pelos numerosos e admiráveis dons que nos outorgou culmina na celebração central da Igreja, que é a Eucaristia, alimento substancial dos discípulos e missionários. Também pelo Sacramento do Perdão de Cristo que nos alcançou na cruz. Louvamos ao Senhor Jesus pelo presente de sua Mãe Santíssima, Mãe de Deus e Mãe da Igreja na América Latina e do Caribe, estrela da evangelização renovada, primeira discípula e grande missionária de nossos povos.
1.2. A alegria de ser discípulos e missionários de Jesus Cristo
27. Iluminados pelo Cristo, o sofrimento, a injustiça e a cruz nos desafiam a viver como Igreja samaritana (cf. Lc 10,25-37), recordando que “a evangelização vai unida sempre à promoção humana e à autêntica libertação cristã”20. Damos graças a Deus e nos alegramos pela fé, solidariedade e alegria características de nossos povos, transmitidas ao longo do tempo pelas avós e avôs, as mães e pais, os catequistas, os rezadores e tantas pessoas anônimas, cuja caridade mantém viva a esperança em meio às injustiças e adversidades.
28. A Bíblia mostra reiteradamente que, quando Deus criou o mundo com sua Palavra, expressou satisfação, dizendo que era “bom” (Gn 1,21), e quando criou o ser humano, homem e mulher, disse que “era muito bom” (Gn 1,31). O mundo criado por Deus é belo. Procedemos de um desígnio divino de sabedoria e amor. Mas, através do pecado esta beleza originária foi desonrada e esta bondade ferida. Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo, em seu mistério pascal, recriou o homem fazendo-o filho e dando a ele a garantia de novos céus e de uma nova terra (cf. Ap 21,1). Levamos a imagem do primeiro Adão, mas somos chamados também, desde o princípio, a produzir a imagem de Jesus Cristo, novo Adão (cf. 1 Cor 15,45). A criação leva a marca do Criador e deseja ser libertada e “participar na gloriosa liberdade dos filhos de Deus” (Rm 8,21).
1.3. A missão da Igreja é evangelizar
29. A história da humanidade, história que Deus nunca abandona, transcorre sob seu olhar compassivo. Deus amou tanto nosso mundo que nos deu seu Filho. Ele anuncia a boa nova do Reino aos pobres e aos pecadores. Por isso, nós, como discípulos e missionários de Jesus, queremos e devemos proclamar o Evangelho, que é o próprio Cristo. Anunciamos a nossos povos que Deus nos ama, que sua existência não é uma ameaça para o homem, que Ele está perto com o poder salvador e libertador de seu Reino, que Ele nos acompanha na tribulação, que alenta incessantemente nossa esperança em meio a todas as provas. Os cristãos são portadores de boas novas para a humanidade, não profetas de desventuras.
30. A Igreja deve cumprir sua missão seguindo os passos de Jesus e adotando suas atitudes (cf. Mt 9,35-36). Ele, sendo o Senhor, fez-se servo e obediente até a morte de cruz (cf. Fl 2,8); sendo rico, escolheu ser pobre por nós (cf. 2 Cor 8,9), ensinando-nos o caminho de nossa vocação de discípulos e missionários. No Evangelho aprendemos a sublime lição de ser pobres seguindo a Jesus pobre (cf. Lc 6,20; 9,58), e a de anunciar o Evangelho da paz sem bolsa ou alforje, sem colocar nossa confiança no dinheiro nem no poder deste mundo (cf. Lc 10,4 ss). Na generosidade dos missionários se manifesta a generosidade de Deus, na gratuidade dos apóstolos aparece a gratuidade do Evangelho.
31. No rosto de Jesus Cristo, morto e ressuscitado, maltratado por nossos pecados e glorificado pelo Pai, nesse rosto doente e glorioso21, com o olhar da fé podemos ver o rosto humilhado de tantos homens e mulheres de nossos povos e, ao mesmo tempo, sua vocação à liberdade dos filhos de Deus, à plena realização de sua dignidade pessoal e à fraternidade entre todos. A Igreja está a serviço de todos os seres humanos, filhos e filhas de Deus.
32. Desejamos que a alegria que recebemos no encontro com Jesus Cristo, a quem reconhecemos como o Filho de Deus encarnado e redentor, chegue a todos os homens e mulheres feridos pelas adversidades; desejamos que a alegria da boa nova do Reino de Deus, de Jesus Cristo vencedor do pecado e da morte, chegue a todos quantos jazem à beira do caminho, pedindo esmola e compaixão (cf. Lc 10,29-37; 18,25-43). A alegria do discípulo é antídoto frente a um mundo atemorizado pelo futuro e agoniado pela violência e pelo ódio. A alegria do discípulo não é um sentimento de bem-estar egoísta, mas uma certeza que brota da fé, que serena o coração e capacita para anunciar a boa nova do amor de Deus. Conhecer a Jesus é o melhor presente que qualquer pessoa pode receber; tê-lo encontrado foi o melhor que ocorreu em nossas vidas, e fazê-lo conhecido com nossa palavra e obras é nossa alegria.
CAPÍTULO 2
OLHAR DOS DISCÍPULOS MISSIONÁRIOS SOBRE A REALIDADE
2.1 A realidade que nos desafia como discípulos e missionários
33. Os povos da América Latina e do Caribe vivem hoje uma realidade marcada por grandes mudanças que afetam profundamente suas vidas. Como discípulos de Jesus Cristo, sentimo-nos desafiados a discernir os “sinais dos tempos”, à luz do Espírito Santo, para nos colocar a serviço do Reino, anunciado por Jesus, que veio para que todos tenham vida e “para que a tenham em abundância” (Jo 10,10).
34. A novidade destas mudanças, diferentemente do ocorrido em outras épocas, é que elas têm um alcance global que, com diferenças e matizes, afetam o mundo inteiro. Habitualmente elas são caracterizadas como o fenômeno da globalização. Um fator determinante destas mudanças é a ciência e a tecnologia, com sua capacidade de manipular geneticamente a própria vida dos seres vivos, e com sua capacidade de criar uma rede de comunicações de alcance mundial, tanto pública como privada, para interagir em tempo real, ou seja, com simultaneidade, não obstante as distâncias geográficas. Como se costuma dizer, a história se acelerou e as próprias mudanças se tornam vertiginosas, visto que se comunica com grande velocidade a todos os cantos do planeta.
35. Esta nova escala mundial do fenômeno humano traz conseqüências em todos os campos de atividade da vida social, impactando a cultura, a economia, a política, as ciências, a educação, o esporte, as artes e também, naturalmente, a religião. Interessa-nos, como pastores da Igreja, saber como este fenômeno afeta a vida de nossos povos e o sentido religioso e ético de nossos irmãos que buscam infatigavelmente o rosto de Deus, e que, no entanto, devem fazê-lo, agora desafiados por novas linguagens do domínio técnico, que nem sempre revelam, mas que também ocultam o sentido divino da vida humana redimida em Cristo. Sem uma clara percepção do mistério do Deus, o desígnio amoroso e paternal de uma vida digna para todos os seres humanos torna-se opaco também.
36. Neste novo contexto social, a realidade para o ser humano se tornou cada vez mais sem brilho e complexa. Isto quer dizer que qualquer pessoa individual necessita sempre mais informação se deseja exercer sobre a realidade o senhorio a que, por vocação, está chamada. Isto tem nos ensinado a olhar a realidade com mais humildade, sabendo que ela é maior e mais complexa que as simplificações com que costumávamos vê-la em um passado ainda não muito distante e que, em muitos casos, introduziram conflitos na sociedade, deixando muitas feridas que ainda não conseguiram cicatrizar. Também se tornou difícil perceber a unidade de todos os fragmentos dispersos que resultam da informação que reunimos. É freqüente que alguns queiram olhar a realidade unilateralmente a partir da informação econômica, outros a partir da informação política ou científica, outros a partir do entretenimento ou do espetáculo. No entanto, nenhum destes critérios parciais consegue nos propor um significado coerente para tudo o que existe. Quando as pessoas percebem esta fragmentação e limitação, costumam se sentir frustradas, ansiosas, angustiadas. A realidade social parece muito grande para uma consciência que, levando em consideração sua falta de saber e de informação, facilmente se crê insignificante, sem ingerência alguma nos acontecimentos, mesmo quando soma sua voz a outras vozes que procuram se ajudar reciprocamente.
37. Esta é a razão pela qual muitos estudiosos de nossa época sustentam que a realidade traz inseparavelmente uma crise do sentido. Eles não se referem aos múltiplos sentidos parciais que cada um pode encontrar nas ações cotidianas que realiza, mas ao sentido que dá unidade a tudo o que existe e nos sucede na experiência, e que os cristãos chamam de sentido religioso. Habitualmente, este sentido se coloca a nossa disposição através de nossas tradições culturais que representam a hipótese de realidade com que cada ser humano pode olhar o mundo em que vive. Em nossa cultura latino-americana e caribenha conhecemos o papel tão nobre e orientador que a religiosidade popular desempenha, especialmente a devoção mariana, que contribuiu para nos tornar mais conscientes de nossa comum condição de filhos de Deus e de nossa comum dignidade perante seus olhos, não obstante as diferenças sociais, étnicas ou de qualquer outro tipo.
38. No entanto, devemos admitir que esta preciosa tradição começa a se diluir. A maioria dos meios de comunicação de massa nos apresentam agora novas imagens, atrativas e cheias de fantasia. Ainda que todos saibam que elas não podem mostrar o sentido unitário de todos os fatores da realidade, oferecem ao menos o consolo de ser transmitidas em tempo real, ao vivo e direto, com atualidade. Longe de preencher o vazio produzido em nossa consciência pela falta de um sentido unitário da vida, em muitas ocasiões a informação transmitida pelos meios só nos distrai. A falta de informação só se resolve com mais informação, retro-alimentando a ansiedade de quem percebe que está em um mundo opaco o qual não compreende.
39. Este fenômeno talvez explique um dos fatos mais desconcertantes e originais que vivemos no presente. Nossas tradições culturais já não se transmitem de uma geração à outra com a mesma fluidez que no passado. Isso afeta, inclusive, esse núcleo mais profundo de cada cultura, constituído pela experiência religiosa, que parece agora igualmente difícil de ser transmitido através da educação e da beleza das expressões culturais, alcançando inclusive a própria família que, como lugar do diálogo e da solidariedade inter-geracional, havia sido um dos veículos mais importantes da transmissão da fé. Os meios de comunicação invadiram todos os espaços e todas as conversas, introduzindo-se também na intimidade do lar. Ao lado da sabedoria das tradições, em competição, localizam-se agora a informação de último minuto, a distração, o entretenimento, as imagens dos vencedores que souberam usar a seu favor as ferramentas tecnológicas e as expectativas de prestígio e estima social. Isso faz com que as pessoas busquem denodadamente uma experiência de sentido que preencha as exigências de sua vocação, ali onde nunca poderão encontrá-la.
40. Entre os pressupostos que enfraquecem e menosprezam a vida familiar encontramos a ideologia de gênero, segundo a qual cada um pode escolher sua orientação sexual, sem levar em consideração as diferenças dadas pela natureza humana. Isto tem provocado modificações legais que ferem gravemente a dignidade do matrimônio, o respeito ao direito à vida e a identidade da família22.
41. Por esta razão, os cristãos precisam recomeçar a partir de Cristo, a partir da contemplação de quem nos revelou em seu mistério a plenitude do cumprimento da vocação humana e de seu sentido. Necessitamos nos fazer discípulos dóceis, para aprende d’Ele, em seu seguimento, a dignidade e a plenitude de vida. E necessitamos, ao mesmo tempo, que o zelo missionário nos consuma para levar ao coração da cultura de nosso tempo aquele sentido unitário e completo da vida humana que nem a ciência, nem a política, nem a economia nem os meios de comunicação poderão proporcionar. Em Cristo Palavra, Sabedoria de Deus (cf. 1 Cor 1,30), a cultura pode voltar a encontrar seu centro e sua profundidade, a partir de onde é possível olhar a realidade no conjunto de todos seus fatores, discernindo-os à luz do Evangelho e dando a cada um seu lugar e sua dimensão adequada.
42. Como nos disse o Papa em seu discurso inaugural: “só quem reconhece a Deus, conhece a realidade e pode responder a ela de modo adequado e realmente humano”23. A sociedade que coordena suas atividades só mediante múltiplas informações, acredita que pode operar de fato como se Deus não existisse. Mas a eficácia dos procedimentos conseguida mediante a informação, ainda que com as tecnologias mais desenvolvidas, não consegue satisfazer o desejo de dignidade inscrito no mais profundo da vocação humana. Por isso, não basta supor que a mera diversidade de pontos de vista, de opções e, finalmente, de informações, que costuma receber o nome de pluri ou multiculturalidade, resolverá a ausência de um significado unitário para tudo o que existe. A pessoa humana é, em sua própria essência, aquele lugar da natureza para onde converge a variedade dos significados em uma única vocação de sentido. As pessoas não se assustam com a diversidade. O que de fato as assusta é não conseguir reunir o conjunto de todos estes significados da realidade em uma compreensão unitária que lhes permita exercer sua liberdade com discernimento e responsabilidade. A pessoa sempre procura a verdade de seu ser, visto que é esta verdade que ilumina a realidade de tal modo que possa se desenvolver nela com liberdade e alegria, com gozo e esperança.
2.1.1 Situação Sócio-cultural
43. Portanto, a realidade social que em sua dinâmica atual descrevemos com a palavra globalização, antes que qualquer outra dimensão, impacta a nossa cultura e o modo como nos inserimos e nos apropriamos dela. A variedade e a riqueza das culturas latino-americanas, desde aquelas mais originárias até aquelas que com a passagem da história e a mestiçagem de seus povos foram se sedimentando nas nações, nas famílias, nos grupos sociais, nas instituições educativas e na convivência cívica, constitui um dado bastante evidente para nós o qual valorizamos como uma singular riqueza. O que hoje em dia está em jogo não é a diversidade que os meios de comunicação são capazes de individualizar e registrar. O que ninguém esquece é, pelo contrário, a possibilidade de que esta diversidade possa convergir em uma síntese que, envolvendo a variedade de sentidos, seja capaz de projetá-la em um destino histórico comum. Nisto reside o valor incomparável do ânimo mariano de nossa religiosidade popular que, sob distintos nomes, tem sido capaz de fundir as histórias latino-americanas diversas em uma história compartilhada: aquela que conduz a Cristo, Senhor da vida, em quem se realiza a mais alta dignidade de nossa vocação humana.
44. Vivemos uma mudança de época cujo nível mais profundo é o cultural. Dissolve-se a concepção integral do ser humano, sua relação com o mundo e com Deus; “aqui está precisamente o grande erro das tendências dominantes do último século... Que excluem Deus de seu horizonte, falsificam o conceito da realidade e só podem terminar em caminhos equivocados e com receitas destrutivas24. Surge hoje, com grande força, uma sobrevalorização da subjetividade individual. Independentemente de sua forma, a liberdade e a dignidade da pessoa são reconhecidas. O individualismo enfraquece os vínculos comunitários e propõe uma radical transformação do tempo e do espaço, dando um papel primordial à imaginação. Os fenômenos sociais, econômicos e tecnológicos estão na base da profunda vivência do tempo, ao que se concebe fixado no próprio presente, trazendo concepções de inconsistência e instabilidade. Deixa-se de lado a preocupação pelo bem comum para dar lugar à realização imediata dos desejos dos indivíduos, à criação de novos e, muitas vezes, arbitrários direitos individuais, aos problemas da sexualidade, da família, das enfermidades e da morte.
45. A ciência e a tecnologia quando colocadas exclusivamente a serviço do mercado, com os critérios únicos da eficácia, da rentabilidade e do funcional, criam uma nova visão da realidade. A utilização dos meios de comunicação de massa está introduzindo na sociedade um sentido estético, uma visão a respeito da felicidade, uma percepção da realidade e até uma linguagem, que se querem impor como uma autêntica cultura. Deste modo, termina-se por destruir o que de verdadeiramente humano há nos processos de construção cultural, que nascem do intercâmbio pessoal e coletivo.
46. Verifica-se, em nível intenso, uma espécie de nova colonização cultural pela imposição de culturas artificiais, desprezando as culturas locais e com tendência a impor uma cultura homogeneizada em todos os setores. Esta cultura se caracteriza pela auto-referência do indivíduo, que conduz à indiferença pelo outro, de quem não necessita e por quem não se sente responsável. Prefere-se viver o dia a dia, sem programas a longo prazo nem apegos pessoais, familiares e comunitários. As relações humanas estão sendo consideradas objetos de consumo, conduzindo a relações afetivas sem compromisso responsável e definitivo.
47. Também se verifica uma tendência para a afirmação exasperada de direitos individuais e subjetivos. Esta busca é pragmática e imediatista, sem preocupação com critérios éticos. A afirmação dos direitos individuais e subjetivos, sem um esforço semelhante para garantir os direitos sociais culturais e solidários, resulta em prejuízo da dignidade de todos, especialmente daqueles que são mais pobres e vulneráveis.
48. Nesta hora da América Latina e do Caribe, é imperativo tomar consciência da situação precária que afeta a dignidade de muitas mulheres. Algumas desde crianças e adolescentes, são submetidas a múltiplas formas de violência dentro e fora de casa: tráfico, violação, escravização e assédio sexual; desigualdades na esfera do trabalho, da política e da economia; exploração publicitária por parte de muitos meios de comunicação social que as tratam como objeto de lucro.
49. As mudanças culturais modificaram os papéis tradicionais de homens e mulheres, que procuram desenvolver novas atitudes e estilos de suas respectivas identidades, potencializando todas suas dimensões humanas na convivência cotidiana, na família e na sociedade, às vezes por vias equivocadas.
50. A avidez do mercado descontrola o desejo de crianças, jovens e adultos. A publicidade conduz ilusoriamente a mundos distantes e maravilhosos, onde todo desejo pode ser satisfeito pelos produtos que têm um caráter eficaz, efêmero e até messiânico. Legitima-se que os desejos se tornem felicidade. Como só se necessita do imediato, a felicidade se pretende alcançar através do bem-estar econômico e da satisfação hedonista.
51. As novas gerações são as mais afetadas por esta cultura do consumo em suas aspirações pessoais profundas. Crescem na lógica do individualismo pragmático e narcisista, que desperta nelas mundos imaginários especiais de liberdade e igualdade. Afirmam o presente porque o passado perdeu relevância diante de tantas exclusões sociais, políticas e econômicas. Para eles o futuro é incerto. Assim mesmo, participam da lógica da vida como espetáculo, considerando o corpo como ponto de referência de sua realidade presente. Têm um novo vício pelas sensações e crescem em uma grande maioria sem referência aos valores e instâncias religiosas. Em meio à realidade de mudança cultural emergem novos sujeitos, com novos estilos de vida, maneiras de pensar, de sentir, de perceber e com novas formas de se relacionar. São produtores e atores da nova cultura.
52. Entre os aspectos positivos desta mudança cultural aparece o valor fundamental da pessoa, de sua consciência e experiência, a busca do sentido da vida e da transcendência. Para dar respostas à busca mais profunda do significado da vida, o fracasso das ideologias dominantes, permitiu que a simplicidade e o reconhecimento do fraco e do pequeno na existência surgissem como valor, com uma grande capacidade e potencial que não podem ser desvalorizados. Esta ênfase na apreciação da pessoa abre novos horizontes, onde a tradição cristã adquire um renovado valor, sobretudo quando a pessoa se reconhece no Verbo encarnado que nasce em um estábulo e assume uma condição humilde, de pobre.
53. A necessidade de construir o próprio destino e o desejo de encontrar razões para a existência podem colocar em movimento o desejo de se encontrar com outros e compartilhar o vivido, como uma maneira de se dar uma resposta. Trata-se de uma afirmação da liberdade pessoal e, por isso, da necessidade de se questionar em profundidade as próprias convicções e opções.
54. Porém, junto com a ênfase na responsabilidade individual em meio a sociedades que promovem o acesso aos bens através dos meios. Paradoxalmente, nega-se às grandes maiorias o acesso aos mesmos bens, que constituem elementos básicos e essenciais para viverem como pessoas.
55. A ênfase na experiência pessoal e no vivencial nos leva a considerar o testemunho como um componente chave na vivência da fé. Os fatos são valorizados quando são significativos para a pessoa. Na linguagem testemunhal podemos encontrar um ponto de contato com as pessoas que compõem a sociedade e delas entre si.
56. Por outro lado, a riqueza e a diversidade cultural dos povos da América Latina e do Caribe parecem evidentes. Existem em nossa região diversas culturas indígenas, afro americanas, mestiças, camponesas, urbanas e suburbanas. As culturas indígenas se caracterizam sobretudo por seu apego profundo à terra, pela vida comunitária e por uma certa procura de Deus Os afro-americanos se caracterizam, entre outros elementos, pela expressividade corporal, o enraizamento familiar e o sentido de Deus. A cultura camponesa está referida ao ciclo agrário. A cultura mestiça, que é a mais extensa entre muitos povos da região, tem buscado em meios às contradições sintetizar ao longo da história estas múltiplas fontes culturais originárias, facilitando o diálogo das respectivas cosmovisões e permitindo sua convergência em uma história compartilhada. A esta complexidade cultural haveria que se acrescentar também a de tantos imigrantes europeus que se estabeleceram nos países de nossa região.
57. Estas culturas coexistem em condições desiguais com a chamada cultura globalizada. Elas exigem reconhecimento e oferecem valores que constituem uma resposta aos anti-valores da cultura e que se impõem através dos meios de comunicação de massas: comunitarismo, valorização da família, abertura à transcendência e solidariedade. Estas culturas são dinâmicas e estão em interação permanente entre si e com as diferentes propostas culturais.
58. A cultura urbana é híbrida, dinâmica e mutável, pois amálgama múltiplas formas, valores e estilos de vida e afeta todas as coletividades. A cultura suburbana é fruto de grandes migrações de população, em sua maioria pobre, que se estabeleceu ao redor das cidades nos cinturões de miséria. Nestas culturas os problemas de identidade e pertença, relação, espaço vital e lar são cada vez mais complexos.
59. Existem também comunidades de migrantes que deixaram as culturas e tradições trazidas de suas terras de origem, sejam cristãs ou de outras religiões. Por sua vez, esta diversidade inclui comunidades que foram se formando com a chegada de diferentes denominações cristãs e outros grupos religiosos. Assim, assumir a diversidade cultural, que é um imperativo do momento, envolve superar os discursos que pretendem uniformizar a cultura, com enfoques baseados em modelos únicos.
2.1.2 Situação econômica
60. O Papa , em seu Discurso Inaugural, vê a globalização como um fenômeno “de relações de nível planetário”, considerando-o “uma conquista da família humana”, porque favorece o acesso a novas tecnologias, mercados e finanças. As altas taxas de crescimento de nossa economia regional e, particularmente, seu desenvolvimento urbano, não seriam possíveis sem a abertura ao comércio internacional, sem acesso às tecnologias de última geração, sem a participação de nossos cientistas e técnicos no desenvolvimento internacional do conhecimento e sem o alto investimento registrado nos meio eletrônicos de comunicação. Tudo isso leva também consigo o surgimento de uma classe média tecnologicamente letrada. Ao mesmo tempo a globalização se manifesta como a profunda aspiração do gênero humano à unidade. Não obstante estes avanços, o Papa também assinala que a globalização “comporta o risco dos grandes monopólios e de converter o lucro em valor supremo”. Por isso, Bento XVI enfatiza que “como em todos os campos da atividade humana, a globalização deve se reger também pela ética, colocando tudo a serviço da pessoa humana, criada a imagem e semelhança de Deus”25.
61. A globalização é um fenômeno complexo que possui diversas dimensões (econômicas, políticas, culturais, comunicacionais, etc). Para sua justa valorização, é necessária uma compreensão analítica e diferenciada que permita detectar tanto seus aspectos positivos quanto os negativos. Lamentavelmente, a face mais difundida e de êxito da globalização é sua dimensão econômica, que se sobrepõe e condiciona as outras dimensões da vida humana. Na globalização, a dinâmica do mercado absolutiza com facilidade a eficácia e a produtividade como valores reguladores de todas as relações humanas. Este peculiar caráter faz da globalização um processo promotor de iniqüidades e injustiças múltiplas. A globalização, tal como está configurada atualmente, não é capaz de interpretar e reagir em função de valores objetivos que se encontram além do mercado e que constituem o mais importante da vida humana: a verdade, a justiça, o amor, e muito especialmente, a dignidade e os direitos de todos, inclusive daqueles que vivem à margem do próprio mercado.
62. Conduzida por uma tendência que privilegia o lucro e estimula a competitividade, a globalização segue uma dinâmica de concentração de poder e de riqueza em mãos de poucos. Concentração não só dos recursos físicos e monetários, mas sobretudo de informação e dos recursos humanos, o que produz a exclusão de todos aqueles não suficientemente capacitados e informados, aumentando as desigualdades que marcam tristemente nosso continente e que mantêm na pobreza uma multidão de pessoas. O que existe hoje é a pobreza de conhecimento e do uso e acesso a novas tecnologias. Por isso é necessário que os empresários assumam sua responsabilidade de criar mais fontes de trabalho e de investir na superação desta nova pobreza.
63. Porém, está claro que o predomínio desta tendência não têm eliminado a possibilidade de se formar pequenas e médias empresas. Elas se associam ao dinamismo exportador da economia, prestam-lhe serviços colaterais ou aproveitam nichos específicos do mercado interno. No entanto, sua fragilidade econômica e financeira e a pequena escala em que se desenvolvem, tornam-nas extremamente vulneráveis frente às taxas de juros, ao risco do câmbio, aos custos previsionais e a variação nos preços de seus insumos. A debilidade destas empresas se associa à precariedade do emprego que estão em condições de oferecer. Sem uma política de proteção específica dos estados a elas, corre-se o risco de que as economias dos grandes consórcios termine por se impor como a única forma determinante do dinamismo econômico.
64. Por isso, frente a esta forma de globalização, sentimos um forte chamado para promover uma globalização diferente, que esteja marcada pela solidariedade, pela justiça e pelo respeito aos direitos humanos, fazendo da América Latina e do Caribe não só o Continente da esperança, mas também o Continente do amor, como propôs SS. Bento XVI no Discurso Inaugural desta Conferência.
65. Isto deveria nos levar a contemplar os rostos daqueles que sofrem. Entre eles estão as comunidades indígenas e afro-americanas que, em muitas ocasiões, não são tratadas com dignidade e igualdade de condições; muitas mulheres são excluídas, em razão de seu sexo, raça ou situação sócio-econômica; jovens que recebem uma educação de baixa qualidade e não têm oportunidades de progredir em seus estudos nem de entrar no mercado de trabalho para se desenvolver e constituir uma família; muitos pobres, desempregados, migrantes, deslocados, agricultores sem terra, aqueles que procuram sobreviver na economia informal; meninos e meninas submetidos à prostituição infantil ligada muitas vezes ao turismo sexual; também as crianças vítimas do aborto. Milhões de pessoas e famílias vivem na miséria e inclusive passam fome. Preocupam-nos também os dependentes das drogas, as pessoas com limitações físicas, os portadores e vítimas de enfermidades graves como a malária, a tuberculose e HIV – AIDS, que sofrem a solidão e se vêem excluídos da convivência familiar e social. Não nos esqueçamos também dos seqüestrados e aqueles que são vítimas da violência, do terrorismo, de conflitos armados e da insegurança na cidade. Também os anciãos que, além de se sentirem excluídos do sistema produtivo, vêem-se muitas vezes recusados por sua família como pessoas incômodas e inúteis. Sentimos as dores, enfim, da situação desumana em que vive a grande maioria dos presos, que também necessitam de nossa presença solidária e de nossa ajuda fraterna. Uma globalização sem solidariedade afeta negativamente os setores mais pobres. Já não se trata simplesmente do fenômeno da exploração e opressão, mas de algo novo: da exclusão social. Com ela o pertencimento à sociedade na qual se vive fica afetado, pois já não se está abaixo, na periferia ou sem poder, mas se está de fora. Os excluídos não são somente “explorados”, mas “supérfluos” e “descartáveis”.
66. As instituições financeiras e as empresas transnacionais se fortalecem ao ponto de subordinar as economias locais, sobretudo, debilitando os Estados, que aparecem cada vez mais impotentes para levar adiante projetos de desenvolvimento a serviço de suas populações, especialmente quando se trata de investimentos de longo prazo e sem retorno imediato. As indústrias extrativistas internacionais e a agroindústria, muitas vezes, não respeitam os direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais das populações locais e não assumem suas responsabilidades. Com muita freqüência, se subordina a preservação da natureza ao desenvolvimento econômico, com danos á biodiversidade, com o esgotamento das reservas de água e de outros recursos naturais, com a contaminação do ar e a mudança climática. As possibilidades e eventuais problemas da produção de agrocombustíveis devem ser estudadas, de tal maneira que prevaleça o valor da pessoa humana e de suas necessidades de sobrevivência. A América Latina possui os aqüíferos mais abundantes do planeta, junto com grandes extensões de território selvagem, que são pulmões da humanidade. Assim se dão gratuitamente ao mundo serviços ambientais que não são reconhecidos economicamente. A região se vê afetada pelo aquecimento da terra e a mudança climática provocada principalmente pelo estilo de vida não sustentável dos países industrializados.
67. A globalização tem celebrado freqüentes Tratados de Livre Comércio entre países com economias assimétricas, que nem sempre beneficiam os países mais pobres, ao mesmo tempo, pressiona-se os países da região com exigências desmedidas em matéria de propriedade intelectual, a tal ponto que se permitem direitos de patente sobre a vida em todas as suas formas. Além disso, a utilização de organismos geneticamente manipulados tem mostrado o que nem sempre a globalização contribui para o combate contra a fome, nem para o desenvolvimento rural sustentável.
68. Ainda que se tenha progredido muitíssimo no controle da inflação e na estabilidade macro-econômica dos países da região, muitos governos se encontram severamente limitados para o financiamento de seu orçamento público pelos elevados serviços da dívida externa26 e interna e que, por outro lado, não contam com sistemas tributários verdadeiramente eficientes, progressivos e eqüitativos.
69. A atual concentração de renda e riqueza acontece principalmente pelos mecanismos do sistema financeiro. A liberdade concedida aos investimentos financeiros favorecem o capital especulativo, que não tem incentivos para fazer investimentos produtivos de longo prazo, mas busca o lucro imediato nos negócios com títulos públicos, moedas e derivados. No entanto, segundo a Doutrina Social da Igreja, “o objeto da economia é a formação da riqueza e seu incremento progressivo, em termos não só quantitativos, mas qualitativos: tudo é moralmente correto se está orientado para o desenvolvimento global e solidário do homem e da sociedade na qual vive e trabalha. O desenvolvimento, na verdade, não pode se reduzir a um mero processo de acumulação de bens e de serviços. Ao contrário, a pura acumulação, ainda que para o bem comum, não é uma condição suficiente para a realização de uma autêntica felicidade humana”27. A empresa é chamada a prestar uma contribuição maior na sociedade, assumindo a chamada responsabilidade social-empresarial, a partir dessa perspectiva.
70. É também alarmante o nível de corrupção nas economias envolvendo tanto o setor público quanto o setor privado, ao que se soma uma notável falta de transparência e prestação de contas à cidadania. Em muitas ocasiões, a corrupção está vinculada ao flagelo do narcotráfico ou do narconegócio ,e por outro lado, vem destruindo o tecido social e econômico em regiões inteiras.
71. A população economicamente ativa da região é afetada pelo subemprego (42%) e o desemprego (9%), e quase a metade está empregada no trabalho informal. O trabalho formal, por sua vez, vê-se submetido à precariedade das condições de emprego e à pressão constante da subcontratação, que traz consigo salários mais baixos e falta de proteção na área da segurança social, não permitindo a muitos o desenvolvimento de uma vida digna. Neste contexto, os sindicatos perdem a possibilidade de defender os direitos dos trabalhadores. Por outro lado, é possível destacar fenômenos positivos e criativos para enfrentar esta situação por parte dos afetados, que vêm estimulando diversas experiências, como por exemplo, micro-finanças, economia local e solidária e comércio justo.
72. Os homens do campo, em sua maioria, sofrem por causa da pobreza, agravada por não terem acesso à terra própria. No entanto, existem grandes latifúndios em mãos de poucos. Em alguns países, esta situação tem levado a população a exigir uma Reforma Agrária, estando atentos aos males que podem lhes ocasionar os Tratados de Livre Comércio, a manipulação de drogas e outros fatores.
73. Um dos fenômenos mais importantes em nossos países é o processo de mobilidade humana, em sua dupla expressão de migração e de itinerância em que milhões de pessoas migram ou se vêem forçadas a migrar dentro e fora de seus respectivos países. As causas são diversas e estão relacionadas com a situação econômica, a violência em suas diversas formas, a pobreza que afeta as pessoas e a falta de oportunidades para a pesquisa e o desenvolvimento profissional. Em muitos casos as conseqüência são de enorme gravidade em nível pessoal, familiar e cultural. A perda do capital humano de milhões de pessoas, de profissionais qualificados, de pesquisadores e amplos setores d agricultura, vai nos empobrecendo cada vez mais. A exploração do trabalho chega, em alguns casos, a gerar condições de verdadeira escravidão. Acontece também um vergonhoso tráfico de pessoas, que inclui a prostituição, inclusive de menores. Merece especial menção a situação dos refugiados, que questiona a capacidade de acolhida da sociedade e das igrejas. Por outro lado, no entanto, a remessa de divisas dos emigrados a seus países de origem tem se tornado uma importante e, às vezes, insubstituível fonte de recursos para diversos países da região, ajudando o bem-estar e à mobilidade social ascendente daqueles que conseguem participar com êxito neste processo.
2.1.3 Dimensão sócio-política
74. Constatamos um certo progresso democrático que se demonstra em diversos processos eleitorais. No entanto, vemos com preocupação o acelerado avanço de diversas formas de regressão autoritária por via democrática que, em certas ocasiões, resultam em regimes de corte neo-populista. Isto indica que não basta uma democracia puramente formal, fundada em procedimentos eleitorais honestos, mas que é necessário uma democracia participativa e baseada na promoção e respeito dos direitos humanos. Uma democracia sem valores como os mencionados torna-se facilmente uma ditadura e termina traindo o próprio povo.
75. Com a presença da Sociedade Civil assumindo uma atitude mais protagonista e a irrupção de novos atores sociais como são os indígenas, os afro-americanos, as mulheres, os profissionais, uma extensa classe média e os setores marginalizados organizados, está se fortalecendo a democracia participativa e estão se criando maiores espaços de participação política. Estes grupos estão tomando consciência do poder que têm em suas mãos e da possibilidade de gerarem mudanças importantes para a conquista de políticas públicas mais justas, que revertam sua situação de exclusão. Neste plano, percebe-se também uma crescente influência de organismos das nações unidas e de Organizações Não-Governamentais de caráter internacional que nem sempre ajustam suas recomendações a critérios éticos. Não faltam também atuações que radicalizam as posições, fomentam a conflitividade e a polarização extremas e colocam esse potencial a serviço de interesses alheios aos seus, o que, ao final, pode frustrar e reverter negativamente suas esperanças.
76. Depois de uma época de debilidade dos Estados devido a aplicação de ajustes estruturais na economia, por recomendação de organismos financeiros internacionais, olha-se, atualmente, com bons olhos um esforço por parte dos Estados em definir e aplicar políticas públicas nos campos da saúde, educação, segurança alimentar, previdência social, acesso à terra e à moradia, promoção eficaz da economia para a criação de empregos e leis que favorecem as organizações solidárias. Tudo isto mostra que não pode existir democracia verdadeira e estável sem justiça social, sem divisão real de poderes e sem a vigência do Estado de direito28.
77. Cabe assinalar como um grande fator negativo, o recrudescimento da corrupção na sociedade e no Estado em boa parte da região, envolvendo os poderes legislativos e executivo em todos os seus níveis, alcançando também o sistema judicial que, muitas vezes, inclina seu juízo a favor dos poderosos e gera impunidade, o que coloca em sério risco a credibilidade das instituições públicas e aumenta a desconfiança do povo, fenômeno que se une a um profundo desprezo pela legalidade. Em amplos setores da população e especialmente entre os jovens cresce o desencanto pela política e particularmente pela democracia, pois as promessas de uma vida melhor e mais justa não se cumpriram ou se cumpriram só pela metade. Neste sentido, esquece-se de que a democracia e a participação política são fruto da formação que se faz realidade somente quando os cidadãos são conscientes de seus direitos fundamentais e de seus deveres correspondentes.
78. A vida social em convivência harmônica e pacífica está se deteriorando gravemente em muitos países da América Latina e do Caribe pelo crescimento da violência, que se manifesta em roubos, assaltos, seqüestros, e o que é mais grave, em assassinatos que a cada dia destroem mais vidas humanas e enchem de dor as famílias e a sociedade inteira. A violência se reveste de várias formas e tem diversos agentes: o crime organizado e o narco-tráfico, grupos paramilitares, violência comum sobretudo na periferia das grandes cidades, violência de grupos de jovens e crescente violência intra-familiar. Suas causas são múltiplas: a idolatria elo dinheiro, o avanço de uma ideologia individualista e utilitarista, a falta de respeito pela dignidade de cada pessoa, a deterioração do tecido social, a corrupção inclusive nas forças de ordem e a falta de políticas públicas de equidade social.
79. Alguns parlamentos ou assembléias legislativas aprovam leis injustas contra os direitos humanos e a vontade popular, precisamente por não estar perto de seus representados, nem saber escutar e dialogar com os cidadãos, mas também por ignorância, por falta de acompanhamento e porque muitos cidadãos abdicam de seu dever de participar na vida pública.
80. Em alguns países tem aumentado a repressão, a violência dos direitos humanos, inclusive o direito à liberdade religiosa, a liberdade de expressão e a liberdade de ensino, assim como o desprezo à objeção de consciência.
81. Ainda que alguns países tenham conseguido acordos de paz superando dessa forma conflitos antigos, em outros, continua a luta armada com todas as suas seqüelas (mortes violentas, violações dos Direitos Humanos, ameaças, crianças na guerra, seqüestros, etc.), sem que se possa observar soluções em curto prazo. A influência do narco-negócio nestes grupos dificulta ainda mais as possíveis soluções.
82. Na América Latina e no Caribe vê-se com bons olhos uma crescente vontade de integração regional com acordos multilaterais, envolvendo um número crescente de países que geram suas próprias regras no campo do comércio, dos serviços e das patentes. À origem comum unem-se a cultura, a língua e a religião que podem contribuir para que a integração não seja só de mercados, mas de instituições civis e de pessoas. Também é positiva a globalização da justiça, no campo dos direitos humanos e dos crimes contra a humanidade que permitirá a todos viver progressivamente sob normas iguais chamadas a proteger sua dignidade, sua integridade e sua vida.
2.1.4 Biodiversidade, ecologia, Amazônia e Antártida
83. A América Latina é o Continente que possui uma das maiores biodiversidades do planeta e uma rica sócio diversidade representada por seus povos e culturas. Estes possuem um grande acervo de conhecimentos tradicionais sobre a utilização dos recursos naturais, assim como sobre o valor medicinal de plantas e outros organismos vivos, muitos dos quais formam a base de sua economia. Tais conhecimentos são atualmente objeto de apropriação intelectual ilícita, sendo patenteados por indústrias farmacêuticas e de biogenética, gerando vulnerabilidade dos agricultores e suas famílias que dependem desses recursos para sua sobrevivência.
84. Nas decisões sobre as riquezas da biodiversidade e da natureza as populações tradicionais têm sido praticamente excluídas. A natureza foi e continua sendo agredida. A terra foi depredada. As águas estão sendo tratadas como se fossem uma mercadoria negociável pelas empresas, além de haver sido transformadas em um bem disputado pelas grandes potências. Um exemplo muito importante nesta situação é a Amazônia29.
85. Em seu discurso aos jovens, no Estádio do Pacaembu, em São Paulo, o Papa Bento XVI chamou a atenção sobre a “devastação ambiental da Amazônia e as ameaças à dignidade humana de seus povos”30 e pediu aos jovens “um maior compromisso nos mais diversos espaços de ação31”.
86. A crescente agressão ao meio-ambiente pode servir de pretexto para propostas de internacionalização da Amazônia, que só servem aos interesses econômicos das corporações internacionais. A sociedade panamazõnica é pluriétnica, pluricultural e plurireligiosa. Nela, está-se intensificando, cada vez mais, a disputa pela ocupação do território. As populações tradicionais da região querem que seus territórios sejam reconhecidos e legalizados.
87. Além disso, constatamos o retrocesso das geleiras em todo o mundo: o degelo do Ártico cujo impacto já está se vendo na flora e fauna desse ecossistema; também o aquecimento global se faz sentir no estrondoso crepitar dos blocos de gelo ártico que reduzem a cobertura glacial do Continente e que regula o clima do mundo. Profeticamente, há 20 anos, desde a fronteira das Américas, João Paulo II assinalou: “Desde o Cone Sul do Continente Americano e frente aos ilimitados espaços da Antártida, lanço um chamado a todos os responsáveis de nosso planeta para proteger e conservar a natureza criada por Deus: não permitamos que nosso mundo seja uma terra cada vez mais degradada e degradante”32.
2.1.5 Presença dos povos indígenas e afro-americanos na Igreja
88. Os indígenas constituem a população mais antiga do Continente. Estão na raiz primeira da identidade latino-americana e caribenha. Os afro-americanos constituem outra raiz que foi arrancada da África e trazida para cá como gente escravizada. A terceira raiz é a população pobre que migrou da Europa a partir do século XVI, em busca de melhores condições de vida e o grande fluxo de imigrantes de todo o mundo a partir de meados do século XIX. De todos estes grupos e de suas correspondentes culturas se formou a mestiçagem que é a base social e cultural de nossos povos latino-americanos e caribenhos, como já o reconheceu a III Conferência Geral do Episcopado Latino-americano celebrada em Puebla, México33.
89. Os indígenas e afro-americanos são, sobretudo, “outros” diferentes que exigem respeito e reconhecimento. A sociedade tende a menosprezá-los, desconhecendo o porquê de suas diferenças. Sua situação social está marcada pela exclusão e pela pobreza. A Igreja acompanha os indígenas e afro-americanos nas lutas por seus legítimos direitos.
90. Hoje, os povos indígenas e afros estão ameaçados em sua existência física, cultural e espiritual; em seus modos de vida; em suas identidades; em sua diversidade; em seus territórios e projetos. Algumas comunidades indígenas se encontram fora de suas terras porque elas foram invadidas e degradadas, ou não tem terras suficientes para desenvolver suas culturas. Sofrem graves ataques a sua identidade e sobrevivência, pois a globalização econômica e cultural coloca em perigo sua própria existência como povo diferentes. Sua progressiva transformação cultural provoca o rápido desaparecimento de algumas línguas e culturas. A migração, forçada pela pobreza, está influindo profundamente na mudança de seus costumes, de relacionamentos e inclusive de religião.
91. Os indígenas e afro-americanos emergem agora na sociedade e na Igreja. Este é um “kairós” para aprofundar o encontro da Igreja com estes setores humanos que reivindicam o reconhecimento pleno de seus direitos individuais e coletivos, serem levados em consideração na catolicidade com sua cosmovisão, seus valores e suas identidades particulares, para viver um novo Pentecostes eclesial.
92. Já, em Santo Domingo, os pastores reconheciam que “os povos indígenas cultivam valores humanos de grande significado”34; valores que “a Igreja defende... diante da força dominadora das estruturas de pecado manifestas na sociedade moderna”35; “são possuidores de inumeráveis riquezas culturais, que estão na base de nossa identidade atual”36; e, a partir da perspectiva da fé, “estes valores e convicções são fruto de ‘sementes do Verbo’, que já estavam presentes e operavam em seus antepassados”37.
93. Entre eles podemos assinalar: “abertura à ação de Deus pelos frutos da terra, o caráter sagrado da vida humana, a valorização da família, o sentido de solidariedade e a co-responsabilidade no trabalho comum, a importância do cultual, a crença em uma vida ultra terrena”38. Atualmente, o povo tem enriquecido amplamente estes valores através da evangelização e os tem desenvolvido em múltiplas formas de autêntica religiosidade popular.
94. Como Igreja que assume a causa dos pobres, estimulamos a participação dos indígenas e afro-americanos na vida eclesial Vemos com esperança o processo de inculturação discernido à luz do magistério. É prioritário fazer traduções católicas da Bíblia e dos textos litúrgicos nos idiomas desses povos. Necessita-se, igualmente, promover mais as vocações e os ministérios ordenados procedentes destas culturas.
95. Nosso serviço pastoral à vida plena dos povos indígenas exige que anunciemos a Jesus Cristo e a Boa Nova do Reino de Deus, denunciemos as situações de pecado, as estruturas de morte, a violência e as injustiças internas e externas e fomentemos o diálogo intercultural, interreligioso e ecumênico. Jesus Cristo é a plenitude da revelação para todos os povos e o centro fundamental de referência para discernir os valores e as deficiências de todas as culturas, incluindo as indígenas. Por isso, o maior tesouro que podemos oferecer a eles é que cheguem ao encontro com Jesus Cristo ressuscitado, nosso Salvador. Os indígenas que já receberam o Evangelho, como discípulos e missionários de Jesus Cristo, são chamados a viver com imensa alegria sua realidade cristã, a explicar a razão de sua fé em meio a suas comunidades e a colaborar ativamente para que nenhum povo indígena da América Latina renegue sua fé cristã, mas ao contrário, sintam que em Cristo encontram o sentido pleno de sua existência.
96. A história dos afro-americanos tem sido atravessada por uma exclusão social, econômica, política e, sobretudo, racial, onde a identidade étnica é fator de subordinação social. Atualmente, são discriminados na inserção do trabalho, na qualidade e conteúdo da formação escolar, nas relações cotidianas e, além disso, existe um processo de ocultamento sistemático de seus valores, história, cultura e expressões religiosas. Permanece, em alguns casos, uma mentalidade e um certo olhar de menor respeito em relação aos indígenas e afro-americanos. Desse modo, descolonizar as mentes, o conhecimento, recuperar a memória histórica, fortalecer os espaços e relacionamentos inter-culturais, são condições para a afirmação da plena cidadania destes povos.
97. A realidade latino-americana conta com comunidades afro-americanas muito vivas que participam ativa e criativamente na construção deste continente. Os movimentos pela recuperação das identidades, dos direitos dos cidadãos e contra o racismo e os grupos alternativos de economias solidárias, fazem das mulheres e homens negros sujeitos construtores de sua história e de uma nova história que se vai desenhando na atualidade latino-americana e caribenha. Esta nova realidade se baseia em relações inter-culturais onde a diversidade não significa ameaça, não justifica hierarquias de um poder sobre outros, mas sim diálogo a partir de visões culturais diferentes de celebração, de inter-relacionamento e de reavivamento da esperança.
2.2 Situação de nossa Igreja nesta hora histórica de desafios
98. A Igreja católica na América Latina e no Caribe, apesar das deficiências e ambigüidades de alguns de seus membros, tem dado testemunho de Cristo, anunciado seu Evangelho e oferecido seu serviço de caridade principalmente aos mais pobres, no esforço por promover sua dignidade e também no empenho de promoção humana nos campos da saúde, da economia solidária, da educação, do trabalho, do acesso à terra, da cultura, da habitação e assistência, entre outros. Com sua voz, unida à de outras instituições nacionais e mundiais, tem ajudado a dar orientações prudentes e a promover a justiça, os direitos humanos e a reconciliação dos povos. Isto tem permitido que a Igreja seja reconhecida socialmente em muitas ocasiões como uma instância de confiança e credibilidade. Seu empenho a favor dos mais pobres e sua luta pela dignidade de cada ser humano tem ocasionado, em muitos casos, a perseguição e, inclusive, a morte de alguns de seus membros, os quais consideramos testemunhas da fé. Queremos recordar o testemunho valente de nossos santos e santas, e aqueles que, inclusive sem haver sido canonizados, tem vivido com radicalidade o evangelho e oferecido sua vida por Cristo, pela Igreja e por seu povo.
99. Os esforços pastorais orientados para o encontro com Jesus Cristo vivo deram e continuam dando frutos. Entre outros, destacamos os seguintes:
a) Devido a animação bíblica da pastoral, aumenta o conhecimento da Palavra de Deus e do amor por ela. Graças à assimilação do Magistério da Igreja e a uma melhor formação de generosos catequistas, a renovação da Catequese tem produzido fecundos resultados em todo o Continente, chegando inclusive a países da América do Norte, Europa e Ásia, para onde muitos latino-americanos e caribenhos têm emigrado.
b) A renovação litúrgica acentuou a dimensão celebrativa e festiva da fé cristã centrada no mistério pascal de Cristo Salvador, em particular na Eucaristia. Crescem as manifestações da religiosidade popular, especialmente a piedade eucarística e a devoção mariana. Esforços têm sido realizados para inculturar a liturgia nos povos indígenas e afro-americanos. Estão sendo superados os riscos de reduzir a Igreja a sujeito político, com um melhor discernimento dos impactos sedutores das ideologias. Têm-se fortalecido a responsabilidade e a vigilância com relação às verdades da Fé, ganhando em profundidade e serenidade de comunhão.
c) Nosso povo tem grande estima pelos sacerdotes. Reconhece a santidade de muitos deles, como também seu testemunho de vida, seu trabalho missionário e sua criatividade pastoral, particularmente daqueles que estão em lugares distantes ou em contextos de maior dificuldade. Muitas de nossas Igrejas contam com uma pastoral sacerdotal com experiências concretas de vida em comum e de uma retribuição do clero mais justa. Em algumas Igrejas desenvolve-se o diaconato permanente. Contam também com ministérios confiados aos leigos e outros serviços pastorais, como delegados da Palavra, animadores de assembléia e de pequenas comunidades, entre elas, as comunidades eclesiais de base, os movimentos eclesiais e um grande número de pastorais específicas. Faz-se um grande esforço pela formação em nossos Seminários, nas casas de formação para a vida consagrada e nas escolas para o diaconato permanente. É significativo o testemunho da vida consagrada, sua participação na ação pastoral e sua presença em situações de pobreza, de risco e de fronteira. A Igreja estimula com esperança o incremento de vocações para a vida contemplativa masculina e feminina.
d) Ressalta a abnegada entrega de tantos missionários e missionárias que, até o dia de hoje, tem desenvolvido uma valiosa obra evangelizadora e de promoção humana em todos os nossos povos, com multiplicidade de obras e serviços. Desse modo é reconhecido o trabalho de numerosos sacerdotes, consagradas e consagrados, leigos e leigas que, a partir do nosso Continente, participam da missão ad gentes.
e) Crescem os esforços de renovação pastoral nas paróquias, favorecendo um encontro com Cristo vivo mediante diversos métodos de nova evangelização que se transformam em comunidade de comunidades evangelizadas e missionárias. Contata-se em alguns lugares um florescimento de comunidades eclesiais de base, segundo o critério das Conferências Gerais anteriores, em comunhão com os Bispos e fiéis ao Magistério da Igreja39. Valoriza-se a presença e o crescimento dos movimentos eclesiais e novas comunidades que difundem sua riqueza carismática, educativa e evangelizadora. Tem-se tomado consciência da importância da pastoral Familiar, da Infância e Juvenil.
f) A Doutrina Social da Igreja constitui uma riqueza sem preço que tem animado o testemunho e a ação solidária dos leigos e leigas, aqueles que se interessam cada vez mais por sua formação teológica como verdadeiros missionários da caridade, e se esforçam por transformar de maneira efetiva o mundo segundo Cristo. Hoje, inumeráveis iniciativas laicas no âmbito social, cultural, econômico e político, deixam-se inspirar pelos princípios permanentes, pelos critérios de juízo e pelas diretrizes de ação provenientes da Doutrina Social da Igreja. Valoriza-se o desenvolvimento que tem tido a Pastoral Social, como também a ação da Cáritas em seus vários níveis e a riqueza do voluntariado, nos mais diversos apostolados com incidência social. Tem-se desenvolvido a pastoral da comunicação social e mais do que nunca a Igreja tem contado com mais meios de comunicação para a evangelização da cultura, neutralizando em parte outros grupos religiosos que ganham constantemente adeptos, usando com perspicácia o rádio e a televisão. Temos rádios, televisão, cinema, jornais, internet, páginas de web e a RIIAL que nos enchem de esperança.
g) A diversificação da organização eclesial, com a criação de muitas comunidades, novas jurisdições e organismos pastorais, permitiu que muitas Igrejas locais avançassem na estruturação de uma Pastoral Orgânica, para servir melhor às necessidades dos fiéis. Não com a mesma intensidade, em todas as Igrejas, tem-se desenvolvido o diálogo ecumênico. Também o diálogo interreligioso, quando segue as normas do Magistério, pode enriquecer os participantes em diversos encontros40. Em outros lugares, tem-se criado escolas de ecumenismo ou de colaboração ecumênica em assuntos sociais e outras iniciativas. Manifesta-se, como reação ao materialismo, uma busca de espiritualidade, de oração e de mística que expressa fome e sede de Deus. Por outro lado, a valorização da ética é um sinal dos tempos que indica a necessidade de superar o hedonismo, a corrupção e o vazio dos valores. Alegra-nos, além disso, o profundo sentimento de solidariedade que caracteriza nossos povos e a prática de compartilhar e de ajuda mútua.
100. Apesar dos aspectos positivos que nos alegram na esperança, observamos sombras, entre as quais mencionamos as seguintes:
a) Para a Igreja Católica, a América Latina e o Caribe são de grande importância, por seu dinamismo eclesial, por sua criatividade e porque 43% de todos os seus fiéis vivem nesses locais; no entanto, observamos que o crescimento percentual da Igreja não segue o mesmo ritmo que o crescimento populacional. Na média, o aumento do clero, e sobretudo, das religiosas, distancia-se cada vez mais do crescimento populacional em nossa região41.
b) Lamentamos, seja algumas tentativas de voltar a um certo tipo de eclesiologia e espiritualidade contrárias à renovação do Concílio Vaticano II42, seja algumas leituras e aplicações reducionistas da renovação conciliar; lamentamos a ausência de uma autêntica obediência e do exercício evangélico da autoridade, das infidelidades à doutrina, à moral e à comunhão, nossas débeis vivências da opção preferencial pelos pobres, não poucas recaídas secularizantes na vida consagrada influenciada por uma antropologia meramente sociológica e não evangélica. Tal como manifestou o Santo Padre no Discurso Inaugural de nossa Conferência: “percebe-se um certo enfraquecimento da vida cristã no conjunto da sociedade e do próprio pertencimento à Igreja Católica”43.
c) Constatamos o escasso acompanhamento dado aos fiéis leigos em suas tarefas de serviço à sociedade, particularmente quando assumem responsabilidades nas diversas estruturas de ordem temporal. Percebemos uma evangelização com pouco ardor e sem novos métodos e expressões, uma ênfase no ritualismo sem o conveniente caminho de formação, descuidando de outras tarefas pastorais. De igual forma, preocupa-nos uma espiritualidade individualista. Verificamos, deste modo, uma mentalidade relativista no ético e no religioso, a falta de aplicação criativa do rico patrimônio que contêm a Doutrina Social da Igreja e, em certas ocasiões, uma compreensão limitada do caráter secular que constitui a identidade própria e específica dos fiéis leigos.
d) Na evangelização, na catequese e, em geral, na pastoral, persistem também linguagens pouco significativas para a cultura atual e em particular, para os jovens. Muitas vezes as linguagens utilizadas parecem não levar em consideração a mutação dos códigos existencialmente relevantes nas sociedades influenciadas pela pós-modernidade e marcadas por um amplo pluralismo social e cultural. As mudanças culturais dificultam a transmissão da Fé por parte da família e da sociedade. Frente a isso, não se vê uma presença importante da Igreja na geração de cultura, de modo especial no mundo universitário e nos meios de comunicação.
e) O número insuficiente de sacerdotes e sua não eqüitativa distribuição impossibilitam que muitíssimas comunidades possam participar regularmente na celebração da Eucaristia. Recordando que a Eucaristia faz à Igreja, preocupa-nos a situação de milhares destas comunidades privadas da Eucaristia dominical por longos períodos de tempo. A isto se acrescenta a relativa escassez de vocações ao ministério e à vida consagrada. Falta espírito missionário em membros do clero, inclusive em sua formação. Muitos católicos vivem e morrem sem assistência da Igreja, à qual pertencem pelo batismo. Enfrentam-se dificuldades para assumir a sustentação econômica das estruturas pastorais. Falta solidariedade na comunhão de bens no interior das igrejas locais e entre elas. Em muitas das nossas Igrejas locais não se assume suficientemente a pastoral penitenciária, nem a pastoral de menores infratores e em situações de risco. É insuficiente o acompanhamento pastoral para os migrantes e itinerantes. Alguns movimentos eclesiais nem sempre se integram adequadamente na pastoral paroquial e diocesana; por sua vez, algumas estruturas eclesiais não são suficientemente abertas para acolhê-los.
f) Nas últimas décadas vemos com preocupação, por um lado, que numerosas pessoas perdem o sentido transcendental de suas vidas e abandonam as práticas religiosas e, por outro lado, que um número significativo de católicos estão abandonando a Igreja para entrar em outros grupos religiosos. Ainda que este seja um problema real em todos os países latino-americanos e caribenhos, não existe homogeneidade no que se refere a suas dimensões e sua diversidade.
g) Dentro do novo pluralismo religioso em nosso continente, não se tem diferenciado suficientemente os cristãos que pertencem a outras igrejas ou comunidades eclesiais, tanto por sua doutrina como por suas atitudes, dos que fazem parte da grande diversidade de grupos cristãos (inclusive pseudo-cristãos) que se tem instalado entre nós. Isto porque não é adequado englobar a todos em uma só categoria de análise. Muitas vezes não é fácil o diálogo ecumênico com grupos cristãos que atacam a Igreja Católica com insistência.
h) Reconhecemos que, ocasionalmente, alguns católicos tem se afastado do Evangelho, que requer um estilo de vida mais simples, austero e solidário, mais fiel à verdade e à caridade, como também nos tem faltado valentia, persistência e docilidade à graça de prosseguir, fiel à Igreja de sempre, a renovação iniciada pelo Concílio Vaticano II, impulsionada pelas Conferências Gerais anteriores, e para assegurar o rosto latino-americano e caribenho de nossa Igreja. Reconhecemo-nos como comunidade de pobres pecadores, mendicantes da misericórdia de Deus, congregada, reconciliada, unida e enviada pela força da Ressurreição de seu Filho e a graça de conversão do Espírito Santo.
SEGUNDA PARTE
A VIDA DE JESUS CRSITO NOS DISCÍPULOS MISSIONÁRIOS
CAPÍTULO 3
A ALEGRIA DE SERMOS DISCÍPULOS MISSIONÁRIOS
PARA ANUNCIAR O EVANGELHO DE JESUS CRISTO
101. Neste momento, com incertezas no coração, perguntamo-nos com Tomé: “Como vamos saber o caminho?” (Jo 14,5). Jesus nos responde com uma proposta provocadora: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14,6). Ele é o verdadeiro caminho para o Pai., quem tanto amou ao mundo que deu a seu Filho único, para que todo aquele que nele creia tenha a vida eterna (cf. Jo 3,16). Esta é a vida eterna: “que te conheçam a ti o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo teu enviado” (Jo 17,3). A fé em Jesus como o Filho do Pai é a porta de entrada para a Vida. Como discípulos de Jesus, confessamos nossa fé com as palavras de Pedro: “Tuas palavras dão vida eterna” (Jo 6,68); “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo” (Mt 16,16).
102. Jesus é o Filho de Deus, a Palavra feito carne (cf. Jo 1,14), verdadeiro Deus e verdadeiro homem, prova do amor de Deus aos homens. Sua vida é uma entrega radical de si mesmo a favor de todas as pessoas, consumada definitivamente em sua morte e ressurreição. Por ser o Cordeiro de Deus, Ele é o Salvador. Sua paixão, morte e ressurreição possibilita a superação do pecado e a vida nova para toda a humanidade. N’Ele, o Pai se faz presente, porque quem conhece o Filho conhece o Pai (cf. Jo 14,7).
103. Como discípulos de Jesus reconhecemos que Ele é o primeiro e maior evangelizador enviado por Deus (cf. Lc 4,44) e, ao mesmo tempo, o Evangelho de Deus (cf. Rm 1,3). Cremos e anunciamos “a boa nova de Jesus, Messias, Filho de Deus” (Mc 1,1). Como filhos obedientes á voz do Pai queremos escutar a Jesus (cf. Lc 9,35) porque Ele é o único Mestre (cf. Mt 23,8). Como seus discípulos sabemos que suas palavras são Espírito e Vida (cf. Jo 6,63.68). Com a alegria da fé somos missionários para proclamar o Evangelho de Jesus Cristo e, n’Ele, a boa nova da dignidade humana, da vida, da família, do trabalho, da ciência e da solidariedade com a criação.
3.1. A boa nova da dignidade humana
104. Bendizemos a Deus pela dignidade da pessoa humana, criada a sua imagem e semelhança. Ele nos criou livres e nos fez sujeitos de direitos e deveres em meios à criação. Agradecemos-lhe por nos associar ao aperfeiçoamento do mundo, dando-nos inteligência e capacidade para amar; pela dignidade, que recebemos também com a tarefa e o dever de proteger, cultivar e promover. Bendizemos a Deus pelo dom da fé que nos permite viver em aliança com Ele até o momento de compartilhar a vida eterna. Bendizemos a Deus por nos fazer suas filhas e filhos em Cristo, por nos haver redimido com o preço de seu sangue e pelo relacionamento permanente que estabelece conosco, que é fonte de nossa dignidade absoluta, inegociável e inviolável. Se o pecado deteriorou a imagem de Deus no homem e feriu sua condição, a boa nova, que é Cristo, o redimiu e o restabeleceu na graça (cf. Rm 5,12-21).
105. Louvamos a Deus pelos homens e mulheres da América Latina e do Caribe que, movidos por sua fé, tem trabalhado incansavelmente na defesa da dignidade da pessoa humana, especialmente dos pobres e marginalizados. Em seu testemunho, levado até a entrega total, resplandece a dignidade do ser humano.
3.2 A boa nova da vida
106. Louvamos a Deus pelo dom maravilhoso da vida e por aqueles que a honram e a dignificam ao colocá-la a serviço dos demais; pelo espírito alegre de nossos povos que amam a música, a dança, a poesia, a arte, o esporte e cultivam uma firme esperança em meio a problemas e lutas. Louvamos a Deus porque, sendo nós pecadores, Ele nos mostrou seu amor reconciliando-nos consigo pela morte de seu Filho na cruz. Louvamos a Deus porque Ele continua derramando seu amor em nós pelo Espírito Santo e nos alimentando com a Eucaristia, pão da vida (cf. Jo 6,35). A Encíclica “Evangelho da Vida”, de João Paulo II, ilumina o grande valor da vida humana a qual devemos cuidar e pela qual continuamente devemos louvar a Deus.
107. Bendizemos ao Pai pelo dom de seu Filho Jesus Cristo “rosto humano de Deus e rosto divino do homem”44. “Na realidade, tão só o mistério do Verbo encarnado explica verdadeiramente o mistério do homem. Cristo, na própria revelação do mistério do Pai e de seu amor, manifesta plenamente o homem ao próprio homem e descobre sua altíssima vocação”45.
108. Bendizemos ao Pai porque, mesmo entre dificuldades e incertezas, todo homem aberto sinceramente à verdade e ao bem comum, pode chegar a descobrir na lei natural escrita em seu coração (cf. Rm 2,14-150, o valor sagrado da vida humana desde seu início até seu fim natural e afirmar o direito de cada ser humano de ver respeitado totalmente este seu bem primário. “A convivência humana e a própria comunidade política”46 se fundamenta no reconhecimento desse direito.
109. Diante de uma vida sem sentido, Jesus nos revela a vida íntima de Deus em seu mistério mais elevado, a comunhão trinitária. É tal o amor de Deus, que faz do homem, peregrino neste mundo, sua morada: “Viremos a ele e viveremos nele” (Jo 14,23). Diante do desespero de um mundo sem Deus, que só vê na morte o final definitivo da existência, Jesus nos oferece a ressurreição e a vida eterna na qual deus será tudo em todos (cf. 1 Cor 15,28). Diante da idolatria dos bens terrenos, Jesus apresenta a vida em Deus como valor supremo: “de que vale alguém ganhar o mundo e perder a sua vida?” (Mc 8,36)47.
110. Diante do subjetivismo hedonista, Jesus propõe entregar a vida para ganha-la, porque “quem aprecia sua vida terrena, perdê-la-á” (Jo 12,25). É próprio do discípulo de Jesus gastar sua vida como sal da terra e luz do mundo. Diante do individualismo, Jesus convoca a viver e caminhar juntos. A vida cristã só se aprofunda e se desenvolve na comunhão fraterna. Jesus nos disse “um é seu mestre e todos vocês são irmãos” (Mt 23,8). Diante da despersonalização, Jesus ajuda a construir identidades integradas.
111. A própria vocação, a própria liberdade e a própria originalidade são dons de Deus para a plenitude e a serviço do mundo.
112. Diante da exclusão, Jesus defende os direitos dos fracos e a vida digna de todo ser humano. De seu Mestre, o discípulo tem aprendido a lutar contra toda forma de desprezo da vida e de exploração da pessoa humana48. Só o Senhor é autor e dono da vida. O ser humano, sua imagem vivente, é sempre sagrado, desde a sua concepção até a sua morte natural; em todas as circunstâncias e condições de sua vida. Diante das estruturas de morte, Jesus faz presente a vida plena. “Eu vim para dar vida aos homens e para que a tenham em abundância” (Jo 10,10). Por isso, cura os enfermos, expulsa os demônios e compromete os discípulos na promoção da dignidade humana e de relacionamentos sociais fundados na justiça.
113. Diante da natureza ameaçada, Jesus que conhecia o cuidado do Pai pelas criaturas que Ele alimenta e embeleza (cf Lc 12,28), convoca-nos a cuidar da terra para que ela ofereça abrigo e sustento a todos os homens (cf. Gn 1,29; 2,15).
3.3 A boa nova da família
114. Proclamamos com alegria o valor da família na América Latina e no Caribe. O Papa Bento XVI afirma que a família, “patrimônio da humanidade, constitui um dos tesouros mais importantes dos povos latino-americanos e caribenhos. Ela tem sido e é escola da fé, palestra de valores humanos e cívicos, lar em que a vida humana nasce e se acolhe generosa e responsavelmente... A família é insubstituível para a serenidade pessoal e para a educação de seus filhos”49.
115. Agradecemos a Cristo que nos revela que “Deus é amor e vive em si mesmo um mistério pessoal de amor”50 e, optando por viver em família em meio a nós, eleva-a à dignidade de ‘Igreja Doméstica’.
116. Bendizemos a Deus por haver criado o ser humano, homem e mulher, ainda que hoje se queira confundir esta verdade: “Criou Deus os seres humanos a sua imagem; a imagem de Deus os criou, homem e mulher os criou” (Gn 1,27). Pertence à natureza humana que o homem e a mulher busquem um no outro sua reciprocidade e complementaridade51.
117.O fato de sermos amados por Deus enche-nos de alegria. O amor humano encontra sua plenitude quando participa do amor divino, do amor de Jesus que se entrega solidariamente por nós em seu amor pleno até o fim (cf. Jo 13,1; 15,9). O amor conjugal é a doação recíproca entre um homem e uma mulher, os esposos: é fiel e exclusivo até a morte e fecundo, aberto á vida e á educação dos filhos, assemelhando-se ao amor fecundo da Santíssima Trindade52. O amor conjugal é assumido no Sacramento do Matrimônio para significar a união de Cristo com sua Igreja. Por isso, na graça de Jesus Cristo ele encontra sua purificação, alimento e plenitude ( Ef 5,23-33).
118. No seio de uma família, a pessoa descobre os motivos e o caminho para pertencer á família de Deus. Dela, recebemos a vida que é a primeira experiência do amor e da fé. O grande tesouro da educação dos filhos na fé consiste na experiência de uma vida familiar que recebe a fé, conserva-a, celebra-a, transmite-a e dá testemunha dela. Os pais devem tomar nova consciência de sua alegre e irrenunciável responsabilidade na formação integral de seus filhos.
119. Deus ama nossas famílias, apesar de tantas feridas e divisões. A presença invocada de Cristo através da oração em família nos ajuda a superar os problemas, a curar as feridas e abre caminhos de esperança. Muitos vazios de lar podem ser atenuados através de serviços prestados pela comunidade eclesial, família de famílias.
3.4 A boa nova da atividade humana
3.4.1 O trabalho
120. Louvamos a Deus porque na beleza da criação, que é obra de suas mãos, resplandece o sentido do trabalho como participação de sua tarefa criadora e como serviço aos irmãos e irmãs. Jesus, o carpinteiro (cf. Mc 6,3), dignificou o trabalho e o trabalhador e recorda que o trabalho não é um mero apêndice da vida, mas que “constitui uma dimensão fundamental da existência do homem na terra”53, pela qual o homem e a mulher se realizam como seres humanos54. O trabalho garante a dignidade e a liberdade do homem, e é provavelmente “a chave essencial de toda ‘a questão social’”55.
121. Damos graças a Deus porque sua palavra nos ensina que, apesar do cansaço que muitas vezes acompanha o trabalho, o cristão sabe que este, unido à oração, serve não só para o progresso terreno, mas também para a santificação pessoal e a construção do Reino de Deus56. O desemprego, a injusta remuneração pelo trabalho e o viver sem querer trabalhar são contrários ao desígnio de Deus. O discípulo e o missionário, respondendo a este desígnio, promovem a dignidade do trabalhador e do trabalho, o justo reconhecimento de seus direitos e de seus deveres, desenvolvem a cultura do trabalho e denunciam toda injustiça. A guarda do domingo, como dia de descanso, da família e do culto ao Senhor, garante o equilíbrio entre trabalho e repouso. Cabe à comunidade criar estruturas que ofereçam um trabalho ás pessoas deficientes, segundo suas possibilidades57.
122. Louvamos a Deus pelos talentos, pelo estudo e pela decisão de homens e mulheres para promover iniciativas e projetos geradores de trabalho e produção, que elevam a condição humana e o bem-estar da sociedade. A atividade empresarial é boa e necessária quando respeita a dignidade do trabalhador, o cuidado do meio-ambiente e se ordena o bem comum. Perverte-se ao visar só o lucro, atenta contra os direitos dos trabalhadores e a justiça.
3.4.2 A ciência e a tecnologia
123. Louvamos a Deus por aqueles que cultivam as ciências e a tecnologia oferecendo uma imensa quantidade de bens e valores culturais que tem contribuído, entre outras coisas, para prolongar a expectativa de vida e sua qualidade. No entanto, a ciência e a tecnologia não têm as respostas às grandes interrogações da vida humana. A resposta última às questões fundamentais do homem só pode vir de uma razão e ética integrais, iluminadas pela revelação de Deus. Quando a verdade, o bem e a beleza se separam; quando a pessoa humana e suas exigências fundamentais não constituem o critério ético, a ciência e a tecnologia voltam-se contra o homem que as criou.
124. Hoje em dia as fronteiras traçadas entre as ciências se desvanecem. Com este modo de compreender o diálogo, sugere-se a idéia de que nenhum conhecimento é completamente autônomo. Esta situação abre um terreno de oportunidades à teologia para interagir com as ciências sociais.
3.5. A boa nova do destino universal dos bens e da ecologia
125. Junto com os povos originários da América, louvamos ao Senhor que criou o universo como espaço para a vida e a convivência de todos seus filhos e filhas e no-los deixou como sinal de sua bondade e de sua beleza. A criação também é manifestação do amor providente de Deus; foi-nos entregue para que cuidemos dela e a transformemos em fonte de vida digna para todos. Ainda que hoje se tenha generalizado uma maior valorização da natureza, percebemos claramente de quantas maneiras o homem ameaça e inclusive destrói seu ‘habitat’. “Nossa irmã a mãe terra” é nossa casa comum58 e o lugar da aliança de Deus com os seres humanos e com toda a criação. Desatender as mútuas relações e o equilíbrio que o próprio Deus estabeleceu entre as realidades criadas, é uma ofensa ao Criador, um atentado contra a biodiversidade e, definitivamente, contra a vida. O discípulo missionário, a quem Deus encarregou a criação, deve contemplá-la, cuidar dela e utiliza-la, respeitando sempre a ordem dada pelo Criador.
126. A melhor forma de respeitar a natureza é promover uma ecologia humana aberta à transcendência que, respeitando a pessoa e a família, os ambientes e as cidades, segue a indicação paulina de recapitular as coisas em Cristo e de louvar com Ele ao Pai (cf. 1 Cor 3,21-23). O Senhor entregou o mundo para todos, para os das gerações presentes e futuras. O destino universal dos bens exige a solidariedade com a geração presente e as futuras. Visto que os recursos são cada vez mais limitados, seu uso deve estar regulado segundo um princípio de justiça distributiva, respeitando o desenvolvimento sustentável.
3.6 O Continente da esperança e do amor
127. Como discípulos e missionários agradecemos a Deus porque a maioria dos latino-americanos e caribenhos estão batizados. A providência de Deus nos confiou o precioso patrimônio de pertencer á Igreja pelo dom do batismo que nos tem feito membros do Corpo de Cristo, povo de Deus peregrino em terra americanas há mais de quinhentos anos. Alenta nossa esperança a multidão de nossas crianças, os ideais de nossos jovens e o heroísmo de muitas de nossas famílias que, apesar das crescentes dificuldades, seguem sendo fiéis ao amor.. Agradecemos a Deus pela religiosidade de nossos povos que resplandece na devoção ao Cristo sofredor e a sua Mãe bendita, na veneração aos Santos com suas festas patronais, no amor ao Papa e aos demais pastores, no amor à Igreja universal como grande família de Deus que nunca pode nem deve deixar seus próprios filhos sós ou na miséria59.
128. Reconhecemos o dom da vitalidade da Igreja que peregrina na América Latina e no Caribe, sua opção pelos pobres, suas paróquias, suas comunidades, suas associações, seus movimentos eclesiais, novas comunidades e seus múltiplos serviços sociais e educativos. Louvamos ao Senhor por ter feito deste continente um espaço de comunhão e comunicação de povos e culturas indígenas. Também agradecemos o protagonismo que vão adquirindo setores que foram deslocados: mulheres, indígenas, afro-americanas, os homens do campo e habitantes de áreas marginais das grandes cidades. Toda a vida de nossos povos fundada em Cristo e redimida por Ele pode olhar para o futuro com esperança e alegria, acolhendo o chamado do Papa Bento XVI: “Só da Eucaristia brotará a civilização do amor que transformará a América latina e o Caribe para que, além de ser o Continente da esperança, seja também o Continente do amor!”60.
CAPÍTULO 4
A VOCAÇÃO DOS DISCÍPULOS MISSIONÁRIOS À SANTIDADE
4.1 Chamados ao seguimento de Jesus Cristo
129. Por assim dizer, Deus Pai sai de si, para nos chamar a participar de sua vida e de sua glória. Mediante Israel, povo que fez seu, Deus nos revela seu projeto de vida. Cada vez que Israel procurou e necessitou de seu Deus, sobretudo nas desgraças nacionais, teve uma singular experiência de comunhão com Ele, que o fazia partícipe de sua verdade, sua vida e sua santidade. Por isso, não demorou em testemunhar que seu Deus – diferentemente dos ídolos – é o “Deus vivo” (Dt 5,26) que o liberta dos opressores (cf. Ex 3,7-10), que perdoa incansavelmente (cf. Ec 34,6; Eclo 2,11) e que restitui a salvação perdida quando o povo, envolvido “nas redes da morte” (Sl 116,3), dirige-se a Ele suplicante (Cf. Is 38,16). Deste Deus – que é seu Pai – Jesus afirmará que “não é um Deus de mortos, mas de vivos” (Mc 12,27).
130. Nestes últimos tempos, Ele nos tem falado por meio de Jesus seu Filho (Hb 1,1ss), com quem chega a plenitude dos tempos (cf. Gl 4,4). Deus, que é Santo e nos ama, nos chama por meio de Jesus a ser santos (cf. Ef 1,4-5).
131. O chamado que Jesus, o Mestre faz, implica numa grande novidade. Na antiguidade, os mestres convidavam seus discípulos a se vincular com algo transcendente e os mestres da Lei propunham a adesão à Lei de Moisés. Jesus convida a nos encontrar com Ele e a que nos vinculemos estreitamente a Ele porque é a fonte da vida (cf. Jo 15,1-5) e só Ele tem palavra de vida eterna (cf. Jo 6,68). Na convivência cotidiana com Jesus e na confrontação com os seguidores de outros mestres, os discípulos logo descobrem duas coisas originais no relacionamento com Jesus. Por um lado, não foram eles que escolheram seu mestre foi Cristo quem os escolheu. E por outro lado, eles não foram convocados para algo (purificar-se, aprender a Lei...), mas para Alguém, escolhidos para se vincular intimamente a sua pessoa (cf. Mc 1,17; 2,14). Jesus os escolheu para “que estivessem com Ele e para enviá-los a pregar” (Mc 3,14), para que o seguissem com a finalidade de “ser d’Ele” e fazer parte “dos seus” e participar de sua missão. O discípulo experimenta que a vinculação íntima com Jesus no grupo dos seus é participação da Vida saída das entranhas do Pai, é se formar para assumir seu estilo de vida e suas motivações (cf. Lc 6,40b), viver seu destino e assumir sua missão de fazer novas todas as coisas.
132. Com a parábola da Videira e dos ramos (cf. Jo 15,1-8), Jesus revela o tipo de vínculo que Ele oferece e que espera dos seus. Não quer um vínculo como “servos” (cf. Jo 8,33-36), porque “o servo não conhece o que faz seu senhor” (jo 15,15). O servo não tem entrada na casa de seu amo, muito menos em sua vida. Jesus quer que seu discípulo se vincule a Ele como “amigo” e como “irmão”. O “amigo” ingressa em sua Vida, fazendo-a própria. O amigo escuta a Jesus, conhece ao Pai e faz fluir sua Vida (Jesus Cristo) na própria existência (cf. Jo 15,14), marcando o relacionamento com todos (cf. Jo 15,12). O “irmão” de Jesus (cf. Jo 20,17) participa da vida do Ressuscitado, Filho do Pai celestial, porque Jesus e seu discípulo compartilham a mesma vida que procede do Pai: Jesus, por natureza (cf. Jo 5,26; 10,30) e o discípulo, por participação (cf. Jo 10,10). A conseqüência imediata deste tipo de vínculo é a condição de irmãos que os membros de sua comunidade adquirem.
133. Jesus faz dos discípulos seus familiares, porque compartilha com eles a mesma vida que procede do Pai e lhes pede, como discípulos, uma união íntima com Ele, obediência à Palavra do Pai, para produzir frutos de amor em abundância. Dessa forma o testemunho de São João no prólogo de seu Evangelho:”A todos aqueles que crêem em seu nome, deu-lhes a capacidade para serem filhos de Deus”, e são filhos de Deus que “não nascem por via de geração humana, nem porque o homem o deseje, mas sim nascem de Deus” (Jo 1,12-13).
134. Como discípulos e missionários, somos chamados a intensificar nossa resposta de fé e a anunciar que Cristo redimiu todos os pecados e males da humanidade, “no aspecto mais paradóxico de seu mistério, a hora da cruz. O grito de Jesus: “Deus, meu, Deus, meu, por que me abandonaste?” (Mc 15,34) não revela a angústia de um desesperado, mas a oração do Filho que oferece a sua vida ao Pai no amor para a salvação de todos”61.
135. A resposta a seu chamado exige entrar na dinâmica do Bom samaritano (cf. Lc 10,29-37), que nos dá o imperativo de nos fazer próximos, especialmente com o que sofre, e gerar uma sociedade sem excluídos, seguindo a prática de Jesus que come com publicanos e pecadores (cf. Lc 5,29-32), que acolhe os pequenos e as crianças (cf. Mc 10,13-16), que cura os leprosos (cf. Mc 1,40-45), que perdoa e liberta a mulher pecadora (cf. Lc 7,36-49; Jo 8,1-11), que fala com a Samaritana (cf. Jo 4,1-26).
4.2 Parecidos com o Mestre
136. A admiração pela pessoa de Jesus, seu chamado e seu olhar de amor despertam uma resposta consciente e livre desde o mais íntimo do coração do discípulo, uma adesão de toda sua pessoa ao saber que Cristo o chama por seu nome (cf. Jo 10,3). É um “sim” que compromete radicalmente a liberdade do discípulo a se entregar a Jesus, Caminho, Verdade e Vida (cf. Jo 14,6). É uma resposta de amor a quem o amou primeiro “até o extremo” (cf. Jo 13,1). A resposta do discípulo amadurece neste amor de Jesus: “Te seguirei por onde quer que vás” (Lc 9,57).
137. O Espírito Santo, com o qual o Pai nos presenteia, identifica-nos com Jesus-Caminho, abrindo-nos a seu mistério de salvação para que sejamos seus filhos e irmãos uns dos outros; identifica-nos com Jesus-Verdade, ensinando-nos a renunciar a nossas mentiras e ambições pessoais, e nos identifica com Jesus-Vida, permitindo-nos abraçar seu plano de amor e nos entregar para que outros “tenham vida n’Ele”.
138. Para ficar parecido verdadeiramente com o Mestre é necessário assumir a centralidade do Mandamento do amor, que Ele quis chamar seu e novo: “Amem-se uns aos outros, como eu os amei” (Jo 15,12). Este amor, com a medida de Jesus, com total dom de si, além de ser o diferencial de cada cristão, não pode deixar de ser a característica de sua Igreja, comunidade discípula de Cristo, cujo testemunho de caridade fraterna será o primeiro e principal anúncio, “todos reconhecerão que sois meus discípulos” (Jo 13,35).
139. No seguimento de Jesus Cristo, aprendemos e praticamos as bem-aventuranças do Reino, o estilo de vida do próprio Jesus: seu amor e obediência filial ao Pai, sua compaixão entranhável frente à dor humana, sua proximidade aos pobres e aos pequenos, sua fidelidade à missão encomendada, seu amor serviçal até a doação de sua vida. Hoje, contemplamos a Jesus Cristo tal como os Evangelhos nos transmitiram para conhecer o que Ele fez e para discernir o que nós devemos fazer nas atuais circunstâncias.
140. Identificar-se com Jesus Cristo é também compartilhar seu destino: “Onde eu estiver, aí estará também o meu servo” (Jo 12,26). O cristão vive o mesmo destino do Senhor, inclusive até a cruz: “Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, carregue a sua cruz e me siga” (Mc 8,34). Estimula-nos o testemunho de tantos missionários e mártires de ontem e de hoje em nossos povos que tem chegado a compartilhar a cruz de Cristo até a entrega de sua vida.
141. A Virgem Maria é a imagem esplêndida da conformação ao projeto trinitário que se cumpre em Cristo. Desde a sua Concepção Imaculada até sua Assunção, recorda-nos que a beleza do ser humano está toda no vínculo do amor com a Trindade, e que a plenitude de nossa liberdade está na resposta positiva que lhe damos.
142. Na América Latina e no Caribe inumeráveis cristãos procuram buscar a semelhança do Senhor ao encontra-lo na escuta orante da Palavra, no receber seu perdão no Sacramento da Reconciliação, e sua vida na celebração da Eucaristia e dos demais sacramentos, na entrega solidária aos irmãos mais necessitados e na vida de muitas comunidades que reconhecem com alegria o Senhor em meio a eles.
4.3 Enviado a anunciar o Evangelho do Reino da vida
143. Jesus Cristo, verdadeiro homem e verdadeiro Deus, com palavras e ações e com sua morte e ressurreição inaugura no meio de nós o Reino de vida do Pai,que alcançará sua plenitude num lugar onde não haverá mais “morte, nem luto, nem pranto, nem dor, porque tudo o que é antigo desaparecerá” (Ap 21,4). Durante sua vida e com sua morte na cruz, Jesus permanece fiel a seu Pai e a sua vontade (cf. Lc 22,42). Durante seu ministério, os discípulos não foram capazes de compreender que o sentido de sua vida selava o sentido de sua morte. Muito menos podiam compreender que, segundo o desígnio do Pai, a morte do Filho era fonte de vida fecunda para todos (cf. Jo 12,23-24). O mistério pascal de Jesus é o ato de obediência e amor ao Pai e de entrega por todos seus irmãos. Com esse ato, o Messias doa plenamente aquela vida que oferecia nos caminhos e aldeias da Palestina. Por seu sacrifício voluntário, o Cordeiro de Deus oferece sua vida nas mãos do Pai (cf. Lc 23,46), que o faz salvação “para nós” (1 Cor 1,30). Pelo mistério pascal, o Pai sela a nova aliança e gera um novo povo que tem por fundamento seu amor gratuito de Pai que salva.
144. Ao chamar aos seus para que o sigam, Jesus lhes dá uma missão muito precisa: anunciar o evangelho do Reino a todas as nações (cf. Mt 28,19; Lc 24,46-48). Por isto, todo discípulo é missionário, pois Jesus o faz partícipe de sua missão ao mesmo tempo que o vincula a Ele como amigo e irmão. Desta maneira, como Ele é testemunha do mistério do Pai, assim os discípulos são testemunhas da morte e ressurreição do Senhor até que Ele retorne. Cumprir esta missão não é uma tarefa opcional, mas parte integrante da identidade cristã, porque é a difusão testemunhal da própria vocação.
145. Quando cresce no cristão a consciência de se pertencer a Cristo, em razão da gratuidade e alegria que produz, cresce também o ímpeto de comunicar a todos o dom desse encontro. A missão não se limita a um programa ou projeto, mas em compartilhar a experiência do acontecimento do encontro com Cristo, testemunha-lo e anuncia-lo de pessoa a pessoa, de comunidade a comunidade e da Igreja a todos os confins do mundo (cf. At 1,8).
146. Bento XVI nos recorda que: “o discípulo, fundamentado assim na rocha da Palavra de Deus, sente-se motivado a levar a Boa Nova da salvação a seus irmãos. Discipulado e missão são como os dois lados de uma mesma moeda: quando o discípulo está enamorado de Cristo, não pode deixar de anunciar ao mundo que só Ele salva (cf. At 4,12). Na realidade, o discípulo sabe que sem Cristo não há luz, não há esperança, não há amor, não há futuro”62. Esta é a tarefa essencial da evangelização, que inclui a opção preferencial pelos pobres, a promoção humana integral e a autêntica libertação cristã.
147. Jesus saiu ao encontro de pessoas em situações muito diferentes: homens e mulheres, pobres e ricos, judeus e estrangeiros, justos e pecadores... convidando-os a segui-los. Hoje, segue convidando a encontrar n’Ele o amor do Pai. Por isto mesmo, o discípulo missionário há de ser um homem ou uma mulher que torna visível o amor misericordioso do Pai, especialmente aos pobres e pecadores.
148. Ao participar desta missão, o discípulo caminha para a santidade. Vive-la na missão o conduz ao coração do mundo. Por isso, a santidade não é uma fuga para o intimismo ou para o individualismo religioso, muito menos um abandono da realidade urgente dos grandes problemas econômicos, sociais e políticos da América Latina e do mundo e, muito menos, uma fuga da realidade para um mundo exclusivamente espiritual63.
4.4 Animados pelo Espírito Santo
149. No começo de sua vida pública e depois de seu batismo, Jesus foi conduzido pelo Espírito Santo ao deserto para se preparar para a sua missão (cf. Mc 1,12-13) e, através da oração e do jejum, discerniu a vontade do Pai e venceu as tentações de seguir outros caminhos. Esse mesmo Espírito acompanhou Jesus durante toda sua vida (cf. At 10,38). Uma vez ressuscitado, Ele comunicou seu Espírito vivificado aos seus (cf. At 2,33).
150. A partir de Pentecostes, a Igreja experimenta de imediato fecundas irrupções do Espírito, vitalidade divina que se expressa em diversos dons e carismas (cf. 1 Cor 12,1-11) e variados ofícios que edificam a Igreja e servem à evangelização (cf. 1 Cor 12,28-29). Através destes dons, a Igreja propaga o ministério salvífico do Senhor até que Ele de novo se manifeste no final dos tempos (cf. 1 Cor 1,6-7). O Espírito na Igreja forja missionários decididos e valentes como Pedro (cf. At 4,13) e Paulo (cf. At 13,9),, indica os lugares que devem ser evangelizados e escolhe aqueles que devem faze-lo (cf. At 13,2).
151. A Igreja, enquanto marcada e selada “com Espírito Santo e fogo” (Mt 3,110, continua a obra do Messias, abrindo para o crente as portas da salvação (cf. 1 Cor 6,110. Paulo afirma isso desse modo: “Vocês são uma carta de cristo redigida por nosso ministério e escrita não com tinta, mas com o Espírito do deus vivo” (2 Cor 3,3). O mesmo e único Espírito guia e fortalece a Igreja no anúncio da Palavra, na celebração da fé e no serviço da caridade até que o Corpo de Cristo alcance a estatura de sua Caneca (cf. Ef 4,15-16). Deste modo, pela eficaz presença de seu Espírito, até a parusia Deus assegura sua proposta de vida para homens e mulheres de todos os tempos e lugares, impulsionando a transformação da história e seus dinamismos. Portanto, o Senhor continua derramando hoje sua Vida pelo trabalho da Igreja que, com “a força do Espírito Santo enviado desde o céu” (1 Pe 1,12), continua a missão que Jesus Cristo recebeu de seu pai (cf. Jo 20,21).
152. Jesus nos transmitiu as palavras de seu Pai e é o Espírito que recorda à Igreja as palavras de Cristo (cf. Jo 14,26). Desde o princípio, os discípulos haviam sido formados por Jesus no Espírito Santo (cf. At 1,2) que é, na Igreja, o Mestre interior que conduz ao conhecimento da verdade total formando discípulos e missionários. Esta é a razão pela qual os seguidores de Jesus devem se deixar guiar constantemente pelo Espírito (cf. Gl 5,25), e tornar a paixão pelo Pai e pelo Reino sua própria paixão: anunciar a Boa Nova aos pobres, curar os enfermos, consolar os tristes, libertar os cativos e anunciar a todos o ano da graça do Senhor (cf. Lc 4,18-19).
153. Esta realidade se faz presente em nossa vida por obra do Espírito Santo que também, através dos sacramentos, nos ilumina e vivifica. Em virtude do Batismo e da Confirmação somos chamados a ser discípulos missionários de Jesus Cristo e entramos na comunhão trinitária na Igreja. Esta tem seu ponto alto na Eucaristia, que é princípio e projeto de missão do cristianismo. “Assim, pois, a Santíssima Eucaristia conduz a iniciação cristã a sua plenitude e é como o centro e fim de toda a vida sacramental”64.
CAPÍTULO 5
A COMUNHÃO DOS DISCÍPULOS MISSIONÁRIOS NA IGREJA
5.1 Chamados a viver em comunhão
154. Jesus, no início de seu ministério, escolhe os doze para viver em comunhão com Ele (cf. Mc 3,14). Para favorecer a comunhão e avaliar a missão, Jesus lhes pede: “Venham só a um lugar desabitado, para descansar um pouco” (Mc 6,31-320. Em outras oportunidades Jesus se encontrará com eles para lhes explicar o mistério do Reino (cf. Mc 4,11.33-34). Jesus age da mesma maneira com o grupo dos setenta e dos discípulos (cf. Lc 10,17-20). Ao que parece, o encontro a sós indica que Jesus quer lhes falar ao coração (cf. Os 2,14). Também hoje o encontro dos discípulos com Jesus na intimidade é indispensável para alimentar a vida comunitária e a atividade missionária.
155. Os discípulos de Jesus são chamados a viver em comunhão com o Pai (1 Jo 1,30 e com seu Filho morto e ressuscitado, na “comunhão no Espírito Santo” (1 Cor 13,13). O mistério da Trindade é a fonte, o modelo e a meta do mistério da Igreja: “um povo reunido pela unidade do Pai do Filho e do Espírito”, chamado em Cristo “como sacramento ou sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano”65. A comunhão dos fiéis e das Igrejas locais do Povo de Deus se sustenta na comunhão com a Trindade.
156. A vocação ao discipulado missionário é con-vocação à comunhão em sua Igreja. Não há discipulado sem comunhão. Diante da tentação, muito presente na cultura atual de ser cristãos sem Igreja e das novas buscas espirituais individualistas, afirmamos que a fé em Jesus Cristo nos chegou através da comunidade eclesial e ela “nos dá uma família, a família universal de Deus na Igreja Católica. A fé nos liberta do isolamento do eu, porque nos conduz à comunhão”66. Isto significa que uma dimensão constitutiva do acontecimento cristão é o fato de pertencer a uma comunidade concreta na qual podemos viver uma experiência permanente de discipulado e de comunhão com os sucessores dos Apóstolos e com o Papa.
157. Ao receber a fé e o batismo, os cristãos acolhem a ação do Espírito Santo que leva a confessar a Jesus como Filho de Deus e a chamar Deus “Abba”. Como todos os batizados e batizadas da América Latina e do Caribe “através do sacerdócio comum do Povo de Deus”67, somos chamados a viver e a transmitir a comunhão com a Trindade, pois “a evangelização é um chamado à participação da comunhão trinitária”68.
158. Igual às primeiras comunidades de cristãos, hoje nos reunimos assiduamente para “escutar o ensinamento dos apóstolos, viver unidos e participar do partir do pão e nas orações” (At 2,42). A comunhão da Igreja se nutre com o Pão da Palavra de Deus e com o Pão do Corpo de Cristo. A Eucaristia, participação de todos no mesmo Pão de Vida e no mesmo Cálice de Salvação, faz-nos membros do mesmo Corpo (cf. 1 Cor 10,17). Ela é a fonte e o ponto mais alto da vida cristã69, sua expressão mais perfeita e o alimento da vida em comunhão. Na Eucaristia, nutrem-se as novas relações evangélicas que surgem do fato de sermos filhos e filhas do Pai e irmãos e irmãs em Cristo. A Igreja que a celebra é “casa e escola de comunhão”70 onde os discípulos compartilham a mesma fé, esperança e amor a serviço da missão evangelizadora.
159. A Igreja, como “comunidade de amor”71 é chamada a refletir a glória do amor de Deus que, é comunhão, e assim atrair as pessoas e os povos para Cristo. No exercício da unidade desejada por Jesus, os homens e mulheres de nosso tempo se sentem convocados e recorrem à formosa aventura da fé. “Que também eles vivam unidos a nós para que o mundo creia” (Jo 17,21). A Igreja cresce, não por proselitismo mas “por ‘atração’: como Cristo ‘atrai tudo a si’ com a força de seu amor”72. A Igreja “atrai” quando vive em comunhão, pois os discípulos de Jesus serão reconhecidos se amarem uns aos outros como Ele nos amou (cf. Rm 12,4-13; Jo 13,34).
160. A Igreja peregrina vive antecipadamente a beleza do amor que se realizará no final dos tempos na perfeita comunhão com Deus e com os homens73. Sua riqueza consiste em viver, já neste tempo, a “comunhão dos santos”, ou seja, a comunhão nos bens divinos entre todos os membros da Igreja, em particular entre os que peregrinam e os que já gozam da glória74. Constatamos que em nossa Igreja existem numerosos católicos que expressam sua fé e seu pertencimento de forma esporádica, especialmente através da piedade a Jesus Cristo, a Virgem e sua devoção aos santos. Convidamos a esses a aprofundar sua fé e a participar mais plenamente na vida da Igreja recordando-lhes que “em virtude do batismo, estão chamados a ser discípulos e missionários em Jesus Cristo”75.
161. A Igreja é comunhão no amor. Esta é sua essência através da qual é chamada a ser reconhecida como seguidora de Cristo e servidora da humanidade. O novo mandamento é o que une os discípulos entre si, reconhecendo-se como irmãos e irmãs, obedientes ao mesmo Mestre, membros unidos à mesma Cabeça e, por isso, chamados a cuidarem uns dos outros (1 Cor 13; Cl 3,12-14).
162. A diversidade de carismas, ministérios e serviços abre o horizonte para o exercício cotidiano da comunhão através da qual os dons do Espírito são colocados à disposição dos demais para que circule a caridade (cf. 1 Cor 12,4-12). Cada batizado, na verdade, é portador de dons que deve desenvolver em unidade e complementaridade com os dons dos outros, a fim de formar o único Corpo de Cristo, entregue para a vida do mundo. O reconhecimento prático da unidade orgânica e da diversidade de funções assegurará maior vitalidade missionária e será sinal e instrumento de reconciliação e paz para nossos povos. Cada comunidade é chamada a descobrir e integrar os talentos escondidos e silenciosos com os quais o espírito presenteia aos fiéis.
163. No povo de Deus “a comunhão e a missão estão profundamente unidas entre si... A comunhão é missionária e a missão é para a comunhão”76. Nas igrejas locais todos os membros do povo de Deus, segundo suas vocações específicas, são convocados à santidade na comunhão e na missão.
5.2 Lugares eclesiais para a comunhão
5.2.1 A diocese, lugar privilegiado da comunhão
164. A vida em comunidade é essencial à vocação cristã. O discipulado e a missão sempre supõe o pertencimento a uma comunidade. Deus não quis nos salvar isoladamente, mas formando um Povo77. Este é um aspecto que distingue a experiência da vocação cristã de um simples sentimento religioso individual. Por isso a experiência de fé é sempre vivida em uma Igreja local.
165. Reunida e alimentada pela Palavra e pela Eucaristia, a Igreja Católica existe e se manifesta em cada Igreja local, em comunhão com o Bispo de Roma78. Esta é, como afirma o Concílio “uma porção do povo de Deus confiada a um bispo para que a apascente com seu presbitério”79.
166. A Igreja local é totalmente Igreja, mas não é toda a Igreja. É a realização concreta do mistério da Igreja Universal em um determinado tempo e lugar. Para isso, ela deve estar em comunhão com as outras igrejas locais e sob o pastoreio supremo do Papa, o Bispo de Roma, que preside todas as Igrejas.
167. O amadurecimento no seguimento de Cristo e a paixão por anunciá-lo requerem que a Igreja local se renove constantemente em sua vida e ardor missionário. Só assim pode ser, para todos os batizados, casa e escola de comunhão, de participação e solidariedade. Em sua realidade social concreta, o discípulo tem a experiência do encontro com Jesus Cristo vivo, amadurece sua vocação cristã, descobre a riqueza e a graça de ser missionário e anuncia a palavra com alegria.
168. A Diocese, em todas suas comunidades e estruturas, é chamada a ser uma “comunidade missionária”80. Cada Diocese necessita fortalecer sua consciência missionária, saindo ao encontro daquele que ainda não crêem em cristo no espaço de seu próprio território e responder adequadamente aos grandes problemas da sociedade na qual está inserida. Mas também, com espírito materno, é chamada a sair em busca de todos os batizados que não participam na vida das comunidades cristãs.
169. A Diocese, presidida pelo Bispo, é o primeiro espaço da comunhão e da missão. Ele deve estimular e conduzir uma ação pastoral orgânica e vigorosa, de maneira que a variedade de carismas, ministérios, serviços e organizações se orientem em um mesmo projeto missionário para comunicar vida no próprio território. Este projeto, que surge de um caminho de variada participação, torna possível a pastoral orgânica, capaz de dar resposta aos novos desafios. Porque um projeto só é eficiente se cada comunidade cristã, cada paróquia, cada comunidade educativa, cada comunidade de vida consagrada, cada associação ou movimento e cada pequena comunidade se inserirem ativamente na pastoral orgânica de cada diocese. Cada uma é chamada a evangelizar de um modo harmônico e integrado no projeto pastoral da Diocese.
5.2.2 A paróquia, comunidade de comunidades
170. Entre as comunidades eclesiais nas quais vivem e se formam os discípulos e missionários de Jesus Cristo as Paróquias sobressaem. Elas são células vivas da Igreja81 e o lugar privilegiado no qual a maioria dos fiéis tem uma experiência concreta de Cristo e a comunhão eclesial82. São chamadas a ser casas e escolas de comunhão. Um dos maiores desejos que se tem expressado nas Igrejas da América Latina e do Caribe motivando a preparação da V Conferência Geral, é o de uma corajosa ação renovadora das Paróquias, a fim de que sejam de verdade “espaços da iniciação cristã, da educação e celebração da fé, abertas à diversidade de carismas, serviços e ministérios, organizadas de modo comunitário e responsável, integradoras de movimentos de apostolado já existentes, atentas à diversidade cultural de seus habitantes, abertas aos projetos pastorais e supra-paroquiais e às realidades circundantes”83.
171. Todos os membros da comunidade paroquial são responsáveis pela evangelização dos homens e mulheres em cada ambiente. O Espírito Santo que atua em Jesus Cristo é também enviado a todos enquanto membros da comunidade, porque sua ação não se limita ao âmbito individual. A tarefa missionária se abre sempre às comunidades, assim como ocorreu no Pentecostes (cf. At 2,1-13).
172. A renovação das paróquias no início do terceiro milênio exige a reformulação de suas estruturas, para que seja uma rede de comunidades e grupos, capazes de se articular conseguindo que seus membros se sintam realmente discípulos e missionários de Jesus Cristo em comunhão. A partir da paróquia é necessário anunciar o que Jesus Cristo “fez e ensinou” (At 1,1) enquanto esteve entre nós. Sua pessoa e sua obra são a boa nova da salvação anunciada pelos ministros e testemunhas da Palavra que o Espírito desperta e inspira. A palavra acolhida é salvífica e reveladora do mistério de Deus e de sua vontade. Toda paróquia é chamada a ser o espaço onde se receba e acolha a Palavra, celebra-se e se expresse na adoração do Corpo de Cristo e, assim, é a fonte dinâmica do discipulado missionário. Sua própria renovação exige que se deixe iluminar de novo e sempre pela Palavra viva e eficaz.
173. A V Conferência Geral é uma oportunidade para que todas as nossas paróquias se tornem missionárias. O número de católicos que chegam a nossa celebração dominical é limitado; é imenso o número dos distanciados, assim como o número daqueles que não conhecem a Cristo. A renovação missionária das paróquias se impõe, tanto na evangelização das grandes cidades como do mundo rural de nosso Continente, que está exigindo de nós imaginação e criatividade para chegar às multidões que desejam o Evangelho de Jesus Cristo. Particularmente no mundo urbano é urgente a criação de novas estruturas pastorais, visto que muitas delas nasceram em outras épocas para responder às necessidades do âmbito rural.
174. Os melhores esforços das paróquias neste início do terceiro milênio devem estar na convocação e na formação de missionários leigos. Só através da multiplicação deles poderemos chegar a responder às exigências missionárias do momento atual. Também é importante recordar que o campo específico da atividade evangelizadora laica é o complexo mundo do trabalho, da cultura, das ciências e das artes, da política, dos meios de comunicação e da economia, assim como as esferas da família, da educação, da vida profissional, sobretudo nos contextos onde a Igreja se faz presente somente por eles84.
175. Seguindo o exemplo da primeira comunidade cristã (cf At 2,46-47), a comunidade paroquial se reúne para partir o pão da Palavra e da Eucaristia e perseverar na catequese, na vida sacramental e na prática da caridade85. Na celebração eucarística ela renova sua vida em Cristo. A Eucaristia, na qual se fortalece a comunidade dos discípulos, é para a Paróquia uma escola de vida cristã. Nela, juntamente com a adoração eucarística e com a prática do sacramento da reconciliação para comungar dignamente, seus membros são preparados para dar frutos permanentes de caridade, reconciliação e justiça para a vida do mundo.
a) A Eucaristia, fonte e ponto alto da vida cristã, faz com que nossas paróquias sejam sempre comunidades eucarísticas que vivem sacramentalmente o encontro com o Cristo Salvador. Elas também celebram com alegria:
b) No batismo: a incorporação de um novo membro a Cristo e a seu corpo que é a Igreja.
c) Na Confirmação: a perfeição do caráter batismal e o fortalecimento do pertencimento eclesial e do amadurecimento apostólico.
d) Na Penitência ou Reconciliação: a conversão que todos necessitamos para combater o pecado, que nos faz incoerentes com os compromissos batismais.
e) Na Unção dos Enfermos; o sentido evangélico dos membros da comunidade, seriamente enfermos ou em perigo de morte.
f) No sacramento da Ordem: o dom do ministério apostólico que continua sendo exercido na Igreja para o serviço pastoral de todos os fiéis.
g) No Matrimônio: o amor entre o casal que como graça de Deus germina e cresce até a maturidade tornando efetiva na vida cotidiana a doação total que mutuamente fizeram ao se casar.
176. A Eucaristia, sinal da unidade com todos, que prolonga e faz presente o mistério do Filho de Deus feito homem (cf. Fl 2,6-8), coloca-nos a exigência de uma evangelização integral. A imensa maioria dos católicos de nosso continente vivem sob o flagelo da pobreza. Esta tem diversas expressões: econômica, física, espiritual, moral, etc. Se Jesus veio para que todos tenhamos vida em abundância, a paróquia tem a maravilhosa ocasião de responder às grande necessidades de nossos povos. Para isso tem que seguir o caminho de Jesus e chegar a ser a boa samaritana como Ele. Cada paróquia deve chegar a concretizar em sinais solidários seu compromisso social nos diversos meios em que ela se move, com toda “a imaginação da caridade”86. Não pode ser alheia aos grandes sofrimentos que vive a maioria de nossa gente e que com muita freqüência são pobrezas escondidas. Toda autêntica missão unifica a preocupação pela dimensão transcendente do ser humano e por todas suas necessidades concretas, para que todos alcancem a plenitude que Jesus Cristo oferece.
177. Bento XVI nos recorda que “o amor à Eucaristia leva também a apreciar cada vez mais o Sacramento da Reconciliação”87. Vivemos em uma cultura marcada por um forte relativismo e uma perda do sentido do pecado que nos leva a esquecer a necessidade do sacramento da Reconciliação que nos permite aproximar dignamente para receber a Eucaristia. Como pastores, somos chamados a fomentar a confissão freqüente. Convidamos nossos presbíteros a dedicar tempo suficiente para oferecer o sacramento da reconciliação com zelo pastoral e entranhas de misericórdia, a preparar dignamente os lugares da celebração, de maneira que sejam expressão do significado deste sacramento. Igualmente, pedimos a nossos fiéis que valorizem este presente maravilhoso de Deus e se aproximem dele para renovar a graça batismal e viver, com maior autenticidade, o chamado de Jesus a serem seus discípulos e missionários. Nós, bispos e presbíteros, ministros da reconciliação, somos chamados a viver, de maneira particular, na intimidade com o Mestre. Somos conscientes de nossa fraqueza e da necessidade de sermos purificados pela graça do sacramento, que se nos oferece para nos identificar, cada vez mais, com Cristo, Bom Pastor e missionário do Pai. Simultaneamente, com plena disponibilidade, temos a alegria de ser ministros da reconciliação, e da mesma maneira nos aproximamos frequentemente, em um caminho penitencial, ao Sacramento da Reconciliação.
5.2.2 Comunidades Eclesiais de Base e Pequenas comunidades
178. Na experiência eclesial de algumas igrejas da América Latina e do Caribe, as Comunidades Eclesiais de Base tem sido escolas que tem ajudado a formar cristãos comprometidos com sua fé, discípulos e missionários do Senhor, como testemunhas de uma entrega generosa, até mesmo com o derramar do sangue de muitos de seus membros. Elas abraçam a experiência das primeiras comunidades, como estão descritas nos Atos dos Apóstolos (At 2,42-47). Medellín reconheceu nelas uma célula inicial de estruturação eclesial e foco de fé e evangelização88. Puebla constatou que as pequenas comunidades, sobretudo as comunidades eclesiais de base, permitiram ao povo chegar a um conhecimento maior da Palavra de Deus, ao compromisso social em nome do Evangelho, ao surgimento de novos serviços leigos e à educação da fé dos adultos89, no entanto, também constatou “que não tem faltado membros de comunidade ou comunidades inteiras que, atraídas por instituições puramente leigas ou radicalizadas ideologicamente, foram perdendo o sentido eclesial90”.
179. As comunidades eclesiais de base, no seguimento missionário de Jesus, têm a Palavra de Deus como fonte de sua espiritualidade e a orientação de seus pastores como guia que assegura a comunhão eclesial. Demonstram seu compromisso evangelizador e missionário entre os mais simples e afastados e são expressão visível da opção preferencial pelos pobres. São fonte e semente de vários serviços e ministérios a favor da vida na sociedade e na Igreja. Mantendo-se em comunhão com seu Bispo e inserindo-se no projeto pastoral diocesano, as CEBs se convertem em um sinal de vitalidade na Igreja particular. Atuando, dessa forma, juntamente com os grupos paroquiais, associações e movimentos eclesiais, podem contribuir para revitalizar as paróquias fazendo das mesmas uma comunidade de comunidades. Em seu esforço de corresponder aos desafios dos tempos atuais, as comunidades eclesiais de base terão cuidado para não alterar o tesouro precioso da Tradição e do Magistério da Igreja.
180. Como resposta às exigências da evangelização, junto com as comunidades eclesiais de base, existem outras formas válidas de pequenas comunidades, e inclusive redes de comunidades, de movimentos, grupos de vida, de oração e de reflexão da palavra de Deus. Todas as comunidades e grupos eclesiais darão fruto na medida em que a Eucaristia seja o centro de sua vida e a Palavra de Deus seja o farol de seu caminho e sua atuação na única Igreja de Cristo.
5.2.4 As Conferências Episcopais e a comunhão entre as Igrejas
181. Os bispos, além do serviço à comunhão que prestam em suas igrejas locais, exercem este ofício junto com as outras igrejas diocesanas. Deste modo, realizam e manifestam o vínculo de comunhão que as une entre si. Esta experiência de comunhão episcopal, sobretudo depois do Concílio Vaticano II, deve ser entendida como um encontro com o Cristo vivo, presente nos irmãos que estão reunidos em seu nome91. Para crescer nessa fraternidade e na co-responsabilidade pastoral, os bispos devem cultivar a espiritualidade da comunhão, a fim de acrescentar os vínculos de colegialidade que os unem aos demais bispos de sua própria Conferência, e também a todo o Colégio Episcopal e à Igreja de Roma, presidida pelo sucessor de Pedro: cum Petro et sub Petro92. Na Conferência Episcopal, os bispos encontram seu espaço de discernimento solidário sobre os grandes problemas da sociedade e da Igreja e o estímulo para oferecer orientações pastorais que animem os membros do Povo de Deus a assumirem com fidelidade e decisão sua vocação de serem discípulos missionários.
182. O Povo de Deus se constrói como uma comunhão de Igrejas locais e, através delas, como um intercâmbio entre as culturas. Neste marco, os bispos e as Igrejas locais expressam sua solicitude para com todas as Igrejas, especialmente para com mais próximas, reunidas nas províncias eclesiásticas, nas conferências regionais e em outras formas de associação interdiocesana no interior de cada Nação ou entre países de uma mesma Região ou Continente. Estas várias formas de comunhão estimulam com vigor as “relações de irmandade entre as dioceses e as paróquias”93 e fomentam “uma maior cooperação entre as igrejas irmãs”94.
183. O CELAM é um organismo eclesial de fraterna ajuda episcopal, cuja preocupação fundamental é colaborar para a evangelização do Continente. Ao longo de seus 50 anos têm oferecido serviços muito importantes às Conferências Episcopais e às nossas Igrejas locais, entre as quais destacamos as Conferências Gerais, os Encontros Regionais, os Seminários de estudo, em seus diversos organismos e instituições. O resultado de todo este esforço é uma perceptível fraternidade entre os bispos do Continente e uma reflexão teológica e uma linguagem pastoral comuns que favorecem a comunhão e o intercâmbio entre as Igrejas.
5.3. Discípulo missionários com vocações específicas
184. A condição do discípulo brota de Jesus Cristo como de sua fonte pela fé e pelo batismo e cresce na Igreja, comunidade onde todos os seus membros adquirem igual dignidade e participam de diversos ministérios e carismas. Deste modo, realiza-se na Igreja a forma própria e específica de viver a santidade batismal a serviço do Reino de Deus.
185. No fiel cumprimento de sua vocação batismal, o discípulo deve levar em consideração os desafios que o mundo de hoje apresenta à Igreja de Jesus, entre outros: o êxodo de fiéis para seitas e outros grupos religiosos; as correntes culturais contrárias a Cristo e a Igreja; a desmotivação de sacerdotes frente ao vasto trabalho pastoral; a escassez de sacerdotes em muitos lugares; a mudança de paradigmas culturais; o fenômeno da globalização e a secularização; os graves problemas de violência, pobreza e injustiça; a crescente cultura da morte que afeta a vida em todas as suas formas.
5.3.1 Os bispos, discípulos missionários de Jesus Sumo Sacerdote
186. Os bispos, como sucessores dos apóstolos junto com o Sumo Pontífice e sob sua autoridade95, com fé e esperança aceitamos a vocação de servir ao Povo de Deus, conforme o coração de Cristo, o Bom Pastor. Junto com todos os fiéis e em virtude do batismo somos, antes de mais nada, discípulos e membros do Povo de Deus. Como todos os batizados e, junto com eles, queremos seguir a Jesus, Mestre de vida e de verdade, na comunhão da Igreja. Como Pastores, servidores do Evangelho, somos conscientes de termos sido chamados a viver o amor a Jesus Cristo e à Igreja na intimidade da oração e da doação de nós mesmos aos irmãos e irmãs, a quem presidimos na caridade. É como disse santo Agostinho: com vocês sou cristão, para vocês sou bispo.
187. O Senhor nos chama a promover por todos os meios a caridade e a santidade dos fiéis. Empenhamo-nos para que o povo de Deus cresça na graça mediante os sacramentos presididos por nós mesmos e pelos demais ministros ordenados. Somos chamados a ser mestres da fé e, portanto, a anunciar a Boa Nova, que é fonte de esperança para todos e a velar e promover com solicitude e coragem a fé católica. Em virtude da íntima fraternidade que provêm do sacramento da Ordem, temos o dever de cultivar de maneira especial os vínculos que nos unem a nossos presbíteros e diáconos. Servimos a Cristo e à Igreja mediante o discernimento da vontade do Pai, para refletir o Senhor em nosso modo de pensar, de sentir, de falar e de se comportar em meio aos homens. Em síntese, os bispos têm de ser testemunhas próximas e alegres de Jesus Cristo, Bom Pastor (cf. Jo 10,1-18).
188. Os bispos, como pastores e guias espirituais das comunidades a nós encomendadas, são chamados a “fazer da Igreja uma casa e escola de comunhão”96. Como animadores da comunhão, temos a missão de acolher, discernir e animar carismas, ministérios e serviços na Igreja. Como padres e centro da unidade, esforçamo-nos por apresentar ao mundo o rosto de uma Igreja na qual todos se sintam acolhidos como em sua própria casa. Para todo o Povo de Deus, em especial para os presbíteros, procuramos ser padres, amigos e irmãos sempre abertos ao diálogo, especialmente para os presbíteros.
189. Para crescer nestas atitudes, os bispos precisam procurar a união constante com o Senhor, cultivar a espiritualidade de comunhão com todos os que crêem em Cristo e promover os vínculos de colegialidade que os unem ao Colégio Episcopal, particularmente com seu cabeça, o Bispo de Roma. Não podemos esquecer que o bispo é princípio e construtor da unidade de sua Igreja Local e santificador de seu povo, testemunha de esperança e padre dos fiéis, especialmente dos pobres, e que sua principal tarefa é ser mestres da fé, anunciador da Palavra de Deus e da administração dos sacramentos, como servidores da grei.
190. Todo o Povo de Deus deve agradecer aos Bispos eméritos que, como pastores têm entregado sua vida a serviço do Reino de Deus, sendo discípulos e missionários. A eles acolhemos com carinho e aproveitamos sua vasta experiência apostólica que, não obstante, pode produzir muitos frutos. Eles mantêm profundos vínculos com as dioceses que lhes foram confiadas às quais estão unidos por sua caridade e sua oração.
5.3.2 Os presbíteros, discípulos missionários de Jesus Bom Pastor
5.3.2.1 Identidade e missão dos presbíteros
191. Valorizamos e agradecemos com alegria que a imensa maioria dos presbíteros vivam seu ministério com fidelidade e sejam modelo para os demais, que separem tempo para sua formação permanente, que cultivem uma vida espiritual que estimule os demais presbíteros e seja centrada na escuta da palavra de Deus e na celebração diária da Eucaristia: “Minha Missa é minha vida e minha vida é uma Missa prolongada!”97. Agradecemos também àqueles que foram enviados a outras Igrejas motivados por um autêntico sentido missionário.
192. Um olhar ao nosso momento atual nos mostra situações que afetam e desafiam a vida e o ministério de nossos presbíteros. Entre outras coisas, a identidade teológica do ministério presbiterial, sua inserção na cultura atual e situações que incidem em sua existência.
193. O primeiro desafio tem relação com a identidade teológica do ministério presbiterial. O Concílio Vaticano II estabelece o sacerdócio ministerial a serviço do sacerdócio comum dos fiéis, e cada um, ainda que de maneira qualitativamente diferente, participa do único sacerdócio de Cristo98. Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote, tem-nos redimido e nos permitido participar de sua vida divina. N’Ele, somos todos filhos do mesmo Pai e irmãos entre nós. O sacerdote não pode cair na tentação de se considerar somente um mero delegado ou só um representante da comunidade, mas sim em ser um dom para ela, pela unção do Espírito e por sua especial união com Cristo. “Todo Sumo Sacerdote é tomado dentre os homens e colocado para intervir a favor dos homens em tudo aquilo que se refere ao serviço de Deus” (Hb 5,1).
194. O segundo desafio se refere ao ministério do presbítero inserido na cultura atual. O presbítero é chamado a conhecê-la para semear nela a semente do Evangelho, ou seja, para que a mensagem de Jesus chegue a ser uma interpelação válida, compreensível, cheia de esperança e relevante para a vida do homem e da mulher de hoje, especialmente para os jovens. Este desafio inclui a necessidade de potencializar adequadamente a formação inicial e permanente dos presbíteros, em suas quatro dimensões; humana, espiritual, intelectual e pastoral99.
195. O terceiro desafio se refere aos aspectos vitais e afetivos, ao celibato e a uma vida espiritual intensa fundada na caridade pastoral, que se nutre na experiência pessoal com Deus e na comunhão com os irmãos; também o cultivo de relações fraternas com o Bispo, com os demais presbíteros da diocese e com os leigos. Para que o ministério do presbítero seja coerente e testemunhal, ele deve amar e realizar sua tarefa pastoral em comunhão com o bispo e com os demais presbíteros da diocese. O ministério sacerdotal que brota da Ordem Sagrada tem uma “radical forma comunitária” e só pode ser desenvolvido como uma “tarefa coletiva”100. O sacerdote deve ser homem de oração, maduro em sua opção de vida por Deus, fazer uso dos meios de perseverança, como o Sacramento da confissão, da devoção à Santíssima Virgem, da mortificação e da entrega apaixonada por sua missão pastoral.
196. Em particular, o presbítero é convidado a valorizar o celibato, como um dom de Deus, que lhe possibilita uma especial configuração com o estilo de vida do próprio Cristo e o faz sinal de sua caridade pastoral na entrega a Deus e aos homens com o coração pleno e indivisível. “Na verdade, esta opção do sacerdote é uma expressão singular da entrega que o configura com Cristo e da entrega de si mesmo pelo Reino de Deus”101. O celibato solicita assumir com maturidade a própria afetividade e sexualidade, vivendo-as com serenidade e alegria em um caminho comunitário102.
197. Outros desafios são de caráter estrutural, como por exemplo, a existência de paróquias muito grandes que dificultam o exercício de uma pastoral adequada: paróquias muito pobres que fazem com que os pastores se dediquem a outras tarefas para poder subsistir; paróquias situadas em regiões de extrema violência e insegurança e a falta e má distribuição de presbíteros nas Igrejas do Continente.
198. O presbítero, a imagem do Bom Pastor, é chamado a ser homem de misericórdia e de compaixão, próximo a seu povo e servidor de todos, particularmente dos que sofrem grandes necessidades. A caridade pastoral, fonte da espiritualidade sacerdotal, anima e unifica sua vida e ministério. Consciente de suas limitações, ele valoriza a pastoral orgânica e se insere com gosto em seu presbitério.
199. O Povo de Deus sente a necessidade de presbíteros-discípulos: que tenham uma profunda experiência de Deus, configurados com o coração do Bom Pastor, dóceis às orientações do Espírito, que se nutram da Palavra de Deus, da Eucaristia e da oração; de presbíteros-missionários; movidos pela caridade pastoral: que os leve a cuidar do rebanho a eles confiados e a procurar aos mais distanciados pregando a Palavra de Deus, sempre em profunda comunhão com seu Bispo, os presbíteros, diáconos, religiosos, religiosas e leigos; de presbíteros-servis da vida: que estejam atentos às necessidades dos mais pobres, comprometidos na defesa dos direitos dos mais fracos e promotores da cultura da solidariedade. Também de presbíteros cheios de misericórdia, disponíveis para administrar o sacramento da reconciliação.
200. Tudo isto requer que as Dioceses e as Conferências Episcopais desenvolvam uma pastoral presbiteral que privilegie a espiritualidade específica e a formação permanente e integral dos sacerdotes. A Exortação Apostólica Pastores Dabo Vobis, enfatiza que: “A formação permanente, precisamente porque é “permanente”, deve acompanhar os sacerdotes sempre, isto é, em qualquer período e situação de sua vida, assim como nos diversos cargos de responsabilidade eclesial que sejam confiados a eles; tudo isso, levando em consideração, naturalmente, as possibilidades e características próprias da idade, condições de vida e tarefas encomendadas”103. Levando em consideração o número de presbíteros que abandonaram o ministério, cada Igreja local deve procurar estabelecer com eles relações de fraternidade e de mútua colaboração conforme as normas prescritas pela Igreja.
5.3.2.2 Os párocos, animadores de uma comunidade de discípulos missionários
201. A renovação da paróquia exige atitudes novas dos párocos e dos sacerdotes que estão a serviço dela. A primeira exigência é que o pároco seja um autêntico discípulo de Jesus Cristo, porque só um sacerdote enamorado do Senhor pode renovar uma paróquia. Mas ao mesmo tempo, deve ser um ardoroso missionário que vive o constante desejo de buscar os afastados e não se contenta com a simples administração.
202. Mas, sem dúvida, não basta a entrega generosa do sacerdote e das comunidades de religiosos. Requer-se que todos os leigos se sintam co-responsáveis na formação dos discípulos e na missão. Isto supõe que os párocos sejam promotores e animadores da diversidade missionária e que dediquem tempo generosamente ao sacramento da reconciliação. Uma paróquia renovada multiplica as pessoas que realizam serviços e acrescenta os ministérios. Igualmente, neste campo, se requer imaginação para encontrar resposta aos muitos e sempre mutáveis desafios que a realidade coloca, exigindo novos serviços e ministérios. A integração de todos eles na unidade de um único projeto evangelizador é essencial para assegurar uma comunhão missionária.
203. Uma paróquia, comunidade de discípulos missionários, requer organismos que superem qualquer tipo de burocracia. Os Conselhos pastorais paroquiais terão que estar formados por discípulos missionários constantemente preocupados em chegar a todos. O Conselho de assuntos Econômicos junto a toda a comunidade paroquial, trabalhará para obter os recursos necessários, de maneira que a missão avance e se faça realidade em todos os ambientes. Estes e todos os organismos precisam estar animados por uma espiritualidade de comunhão missionária: “Sem este caminho espiritual de pouco serviriam os instrumentos externos da comunhão. Mais do que modos de expressão e de crescimento, esses instrumentos se tornariam meios sem alma, máscaras de comunhão”104.
204. Dentro do território paroquial, a família cristã é a primeira e mais básica comunidade eclesial. Nela são vividos e transmitidos os valores fundamentais da vida cristã. Ela é chamada de “Igreja Doméstica”105. Ali, os pais desempenham o papel de primeiros transmissores da fé a seus filhos, ensinando-lhes através do exemplo e da palavra, a serem verdadeiros discípulos missionários. Ao mesmo tempo, quando esta experiência de discipulado missionário é autêntica, “uma família se faz evangelizadora de muitas outras famílias e do ambiente em que ela vive”106. Isto opera na vida diária “dentro e através dos atos, das dificuldades, dos acontecimentos da existência de cada dia”107. O espírito, que tudo faz, novo atua inclusive dentro de situações irregulares nas quais se realiza um processo de transmissão de fé, mas temos de reconhecer que, nas atuais circunstâncias, às vezes este processo se encontra com muitas dificuldades. Não se propõe que a Paróquia chegue só a sujeitos afastados, mas à vida de todas as famílias, para fortalecer sua dimensão missionária.
5.3.3 Os diáconos permanentes, discípulos de Jesus Servo
205. Alguns discípulos e missionários do Senhor são chamados a servir à Igreja como diáconos permanentes, fortalecidos, em sua maioria, pela dupla sacramentalidade do matrimônio e da Ordem. Eles são ordenados para o serviço da Palavra, da caridade e da liturgia, especialmente para os sacramentos do batismo e do Matrimônio; também para acompanhar a formação de novas comunidades eclesiais, especialmente nas fronteiras geográficas e culturais, onde ordinariamente não chega a ação evangelizadora da Igreja.
206. Cada diácono permanente deve cultivar esmeradamente sua inserção no corpo diaconal, em fiel comunhão com seu bispo e em estreita unidade com os presbíteros e os demais membros do povo de Deus. Quando estão a serviço de uma paróquia, é necessário que os diáconos e presbíteros procurem o diálogo e trabalhem em comunhão.
207. Eles devem receber uma adequada formação humana, espiritual, doutrinal e pastoral com programas adequados, que levem em consideração – no caso dos que estão casados – à esposa e sua família. Sua formação os habilitará a exercer seu ministério com fruto nos campos da evangelização, da vida das comunidades, da liturgia e da ação social, especialmente com os mais necessitados, dando assim, testemunho de Cristo servindo ao lado dos enfermos, dos que sofrem, dos migrantes e refugiados, dos excluídos e das vítimas da violência e encarcerados.
208. A V Conferência espera dos diáconos um testemunho evangélico e um impulso missionário para que sejam apóstolos em suas famílias, em seus trabalhos, em suas comunidades e nas novas fronteiras da missão. Não é necessário criar nos candidatos ao diaconato expectativas permanentes que superem a natureza própria que corresponde ao grau do diaconato.
5.3.4 Os fiéis leigos e leigas, discípulos e missionários de Jesus, Luz do Mundo
209. Os fiéis leigos são “os cristãos que estão incorporados a Cristo pelo batismo, que formam o povo de Deus e participam das funções de Cristo: sacerdote, profeta e rei. Eles realizam, segundo sua condição, a missão de todo o povo cristão na Igreja e no mundo”108. São “homens da Igreja no coração do mundo, e homens do mundo no coração da Igreja”109.
210. Sua missão própria e específica se realiza no mundo, de tal modo que, com seu testemunho e sua atividade, eles contribuam para a transformação das realidades e para a criação de estruturas justas segundo os critérios do Evangelho. “O espaço próprio de sua atividade evangelizadora é o mundo vasto e complexo da política, da realidade social e da economia, como também o da cultura, das ciências e das artes, da vida internacional, dos ‘mass media’, e outras realidades abertas à evangelização, como são o amor, a família, a educação das crianças e adolescentes, o trabalho profissional e o sofrimento”110. Além disso, eles tem o dever de fazer crível a fé que professam, mostrando a autenticidade e coerência em sua conduta.
211. Os leigos também são chamados a participar na ação pastoral da Igreja, primeiro com o testemunho de sua vida e, em segundo lugar, com ações no campo da evangelização, da vida litúrgica e outras formas de apostolado segundo as necessidades locais sob a orientação de seus pastores. Eles estarão dispostos a abrir para eles espaços de participação e a confiar ministérios e responsabilidades em uma Igreja onde todos vivam de maneira responsável seu compromisso cristão. Aos catequistas, delegados da Palavra e animadores de comunidades que cumprem uma magnífica tarefa dentro da Igreja111, reconhecemos e animamos a continuarem o compromisso que adquiriram no batismo e na confirmação.
212. Para cumprir sua missão com responsabilidade pessoal, os leigos necessitam de uma sólida formação doutrinal, pastoral, espiritual e um adequado acompanhamento para darem testemunho de Cristo e dos valores do reino no âmbito da vida social, econômica, política e cultural.
213. Hoje, toda a Igreja na América e no Caribe querem se colocar em estado de missão. A evangelização do Continente, nos dizia o papa João Paulo II, não pode se realizar hoje sem a colaboração dos fiéis leigos112. Eles hão de ser parte ativa e criativa na elaboração e execução de projetos pastorais a favor da comunidade. Isto exige, da parte dos pastores, uma maior abertura de mentalidade para que entendam e acolham o “ser” e o “fazer” do leigo na Igreja, que por seu batismo e sua confirmação, é discípulo e missionário de Jesus Cristo. Em outras palavras, é necessário que o leigo seja levado em consideração com um espírito de comunhão e de participação113.
214. Neste contexto é um sinal de esperança, o fortalecimento de várias associações leigas, movimentos apostólicos eclesiais e caminhos de formação cristã, comunidades eclesiais e novas comunidades, que devem ser apoiados pelos pastores. Eles ajudam muitos batizados e muitos grupos missionários a assumir com maior responsabilidade sua identidade cristã e colaborar mais ativamente na missão evangelizadora. Nas últimas décadas, várias associações e movimentos apostólicos laicos desenvolveram um forte protagonismo. Por isso, um adequado discernimento, incentivo, coordenação e condução pastoral, sobretudo da parte dos sucessores dos Apóstolos, contribuirá para ordenar este dom para a edificação da única Igreja114.
215. Reconhecemos o valor e a eficiência dos Conselhos paroquiais, Conselhos diocesanos e nacionais de fiéis leigos, porque incentivam a comunhão e a participação na Igreja e sua presença ativa no mundo. A construção da cidadania no sentido mais amplo e a construção de eclesialidade nos leigos, é um só e único movimento.
5.3.5 Os consagrados e consagradas, discípulos missionários de Jesus, Testemunha do Pai
216. A vida consagrada é um dom do pai, por meio do Espírito, à sua Igreja115, e constitui um elemento decisivo para sua missão116. Expressa-se na vida monástica, contemplativa e ativa, nos institutos seculares, naqueles que se inserem nas sociedades de vida apostólica e outras novas formas. É um caminho de especial seguimento de Cristo, no qual cada um deve dedicar-se Ele com um coração indivisível e, colocar-se, como Ele, a serviço de Deus e da humanidade, assumindo a forma de vida que Cristo escolheu para vir a este mundo: uma vida virginal, pobre e obediente117.
217. Em comunhão com os pastores, os consagrados e consagradas são chamados a fazer de seus lugares de presença, de sua vida fraterna em comunhão e de suas obras, lugares de anúncio explícito do Evangelho, principalmente aos mais pobres, como tem sido em nosso continente desde o início da evangelização. Deste modo, segundo seus carismas fundacionais, eles colaboram com a gestação de uma nova geração de cristãos discípulos e missionários e de uma sociedade onde se respeite a justiça e a dignidade da pessoa humana.
218. A partir do seu ser, a vida consagrada é chamada a ser especialista em comunhão, tanto no interior da Igreja quanto no interior da sociedade. A vida e missão dos consagrados devem estar inseridas na Igreja local e em comunhão com o Bispo. Para isso, é necessário criar procedimentos comuns e iniciativas de colaboração que levem a um conhecimento e valorização mútuos e a um compartilhar da missão com todos os chamados a seguir a Jesus.
219. Em um continente no qual se manifestam sérias tendências de secularização, também na vida consagrada, os religiosos são chamados a dar testemunho da absoluta primazia de Deus e de seu reino. A vida consagrada se converte em testemunha do Deus da vida em uma realidade que relativiza seu valor (obediência), é testemunha de liberdade frente ao mercado e às riquezas que valorizam as pessoas pelo ter (pobreza), e é testemunha de uma entrega no amor radical e livre a Deus e à humanidade frente à erotização e banalização das relações (castidade).
220. Na atualidade da América latina e do caribe, a vida consagrada é chamada a ser uma vida discipular, apaixonada por Jesus-caminho ao Pai misericordioso, e por isso, de caráter profundamente místico e comunitário. É chamada a ser uma vida missionária, apaixonada pelo anúncio de Jesus-verdade do Pai, por isso mesmo, radicalmente profética, capaz de mostrar a luz de Cristo às sombras do mundo atual e os caminhos de uma vida nova, para o que se requer um profetismo que aspire até a entrega da vida em continuidade com a tradição de santidade e martírio de tantas e tantos consagrados ao longo da história do Continente. E, a serviço do mundo, uma vida apaixonada por Jesus-vida do Pai, que se faz presente nos mais pequenos e nos últimos a quem serve, a partir do próprio carisma e espiritualidade.
221. De maneira especial, a América latina e o Caribe necessitam da vida contemplativa, testemunha de que só deus basta para preencher a vida de sentido e de alegria. “Em um mundo que continua perdendo o sentido do divino, diante da supervalorização do material, vocês queridas religiosas, comprometidas desde seus claustros a serem testemunhas dos valores pelos quais vivem, sejam testemunhas do Senhor para o mundo de hoje, infundam com sua oração um novo sopro de vida na Igreja e no homem atual”118.
222. O Espírito segue despertando novas formas de vida consagrada nas Igrejas, aos quais necessitam ser acolhidas e acompanhadas em seu crescimento e desenvolvimento no interior das Igrejas locais. O Bispo precisa usar um discernimento sério e ponderado sobre seu sentido, necessidade e autenticidade. Os Pastores valorizam como um inestimável dom a virgindade consagrada, daqueles que se entregam a Cristo e a sua Igreja com generosidade e coração indivisível, e se propõem velar por sua formação inicial e permanente.
223. As Confederações de Institutos Seculares (CISAL) e de religiosas e religiosos (CLAR) e as Conferências Nacionais são estruturas de serviço e de animação que, em autêntica comunhão com os Pastores e sob sua orientação, em um diálogo fecundo e amistoso119, estão convocadas a estimular seus membros a realizarem a missão como discípulos e missionários a serviço do reino de Deus120.
224. Os povos latino-americanos e caribenhos esperam muito da vida consagrada, especialmente do testemunho e contribuição das religiosas contemplativas e de vida apostólica que, junto aos demais irmãos religiosos, membros de Institutos Seculares e Sociedades de Vida Apostólica, mostram o rosto materno da Igreja. Seu desejo de escuta, acolhida e serviço, e seu testemunho dos valores alternativos do Reino, mostram que uma nova sociedade latino-americana e caribenha, fundada em Cristo, é possível121.
5.4 Os que deixaram a Igreja para se unir a outros grupos religiosos
225. Segundo nossa experiência pastoral, muitas vezes, a pessoa sincera que sai de nossa Igreja não o faz pelo que os grupos “não católicos” crêem, mas, fundamentalmente por causa de como eles vivem; não por razões doutrinais, mas vivenciais; não por motivos estritamente dogmáticos, mas pastorais; não por problemas teológicos, mas metodológicos de nossa Igreja. Esperam encontrar respostas a suas inquietações. Procuram, não sem sérios perigos, responder a algumas aspirações que, quem sabe, não têm encontrado, como deveria ser, na Igreja.
226. Em nossa Igreja temos de reforçar quatro eixos:
a) A experiência religiosa. Em nossa Igreja devemos oferecer a todos os nossos fiéis um “encontro pessoal com Jesus Cristo”, uma experiência religiosa profunda e intensa, um anúncio kerigmático e o testemunho pessoal dos evangelizadores, que leve a uma conversão pessoal e a uma mudança de vida integral.
b) A vivência comunitária. Nossos fiéis procuram comunidades cristãs, onde sejam acolhidos fraternalmente e se sintam valorizados, visíveis e eclesialmente incluídos. É necessário que nossos fiéis se sintam realmente membros de uma comunidade eclesial e co-responsáveis em seu desenvolvimento. Isso permitirá um maior compromisso e entrega em e pela Igreja.
c) A formação bíblico-doutrinal. Junto a uma forte experiência religiosa e uma destacada convivência comunitária, nossos fiéis necessitam aprofundar o conhecimento da Palavra de Deus e os conteúdos da fé, visto que esta é a única maneira de amadurecer sua experiência religiosa. Neste caminho acentuadamente vivencial e comunitário, a formulação doutrinal não se experimenta como um conhecimento teórico e frio, mas como uma ferramenta fundamental e necessária no crescimento espiritual, pessoal e comunitário.
d) O compromisso missionário de toda a comunidade. Ela sai ao encontro dos afastados, interessa-se por sua situação, a fim de reencantá-los com a Igreja e convidá-los a novamente se envolverem com ela.
5.5 Diálogo ecumênico e interreligioso
5.5.1 Diálogo ecumênico para que o mundo creia
227. A compreensão e a prática da eclesiologia de comunhão nos conduz ao diálogo ecumênico. A relação com os irmãos e irmãs batizados de outras Igrejas e comunidades eclesiais é um caminho irrenunciável para o discípulo e missionário122, pois a falta de unidade representa um escândalo, um pecado e um atraso do cumprimento do desejo de Cristo: “para que todos sejam um, como tu, Pai,estás em mim e eu em ti. E para que também eles estejam em nós, a fim de que o mundo acredite que tu me enviaste” (Jo 17,21).
228. O ecumenismo não se justifica por uma exigência simplesmente sociológica mas evangélica, trinitária e batismal: “expressa a comunhão real, ainda que imperfeita” que já existe entre “os que foram regenerados pelo batismo” e o testemunho concreto de fraternidade123. O Magistério insiste no caráter trinitário e batismal do esforço ecumênico, onde o o diálogo emerge como atitude espiritual e prática, em um caminho de conversão e reconciliação. Só assim chegará “o dia em poderemos celebrar, junto com todos os que crêem em Cristo, a divina Eucaristia”124. Uma via fecunda para avançar para a comunhão é recuperar em nossas comunidades o sentido do compromisso do Batismo.
229. Hoje, faz-se necessário reabilitar a autêntica apologética que faziam os pais da Igreja como explicação da fé. A apologética não tem porque ser negativa ou meramente defensiva per se. Implica, na verdade, a capacidade de dizer o que está em nossas mentes e corações de forma clara e convincente, como disse São Paulo “fazendo a verdade na caridade” (Ef 4,15). Mais do que nunca os discípulos e missionários de Cristo de hoje necessitam de uma apologética renovada para que todos possam ter vida n’Ele.
230. Às vezes esquecemos que a unidade é, antes de tudo, um dom do Espírito Santo, e oramos pouco por esta intenção. “Esta conversão do coração e esta santidade de vida, juntamente com as orações particulares e públicas pela unidade dos cristãos, hão de ser considerado como a alma de todo o movimento ecumênico e com razão pode se chamar ecumenismo espiritual”125.
231. Faz mais de quarenta anos que o Concílio vaticano II reconheceu a ação do Espírito Santo no movimento pela unidade dos cristãos. Desde então, temos colhido muitos frutos. Neste campo, necessitamos de mais agentes de diálogo e melhor qualificados. É bom tornar mais conhecidas as declarações que a própria Igreja Católica tem subscrito no campo do ecumenismo desde o Concílio. Os diálogos bilaterais e multilaterais têm produzido bons frutos. Também é oportuno estudar o Diretório ecumênico e suas indicações em relação a catequese, a liturgia, a formação presbiteral e a pastoral126. A mobilidade humana, característica do mundo atual, pode ser ocasião propícia para o diálogo ecumênico da vida127.
232. Em nosso contexto, o surgimento de novos grupos religiosos, mais a tendência a confundir o ecumenismo com o diálogo interreligioso, tem causado obstáculos na conquista de maiores frutos no diálogo ecumênico. Por isso mesmo, incentivamos os ministros ordenados, aos leigos e á vida consagrada a participarem de organismos ecumênicos com uma cuidadosa preparação e um esmerado seguimento dos pastores e realizarem ações conjuntas nos diversos campos da vida eclesial, pastoral e social. Na verdade, o contato ecumênico favorece a estima recíproca, convoca á escuta comum da palavra de Deus e chama à conversão aqueles que se declaram discípulos e missionários de Jesus Cristo. Esperamos que a promoção da unidade dos cristãos, assumida pelas Conferências Episcopais, consolide-se e frutifique sob a luz do espírito Santo.
233. Nesta nova etapa evangelizadora, queremos que o diálogo e a cooperação ecumênica se encaminhem para despertar novas formas de discipulado e missão em comunhão. Cabe observar que onde se estabelece o diálogo, diminui o proselitismo, cresce o conhecimento recíproco e o respeito e se abrem possibilidades de testemunho comum.
234. Como resposta generosa à oração do Senhor “para que todos sejam um” (Jo 17,21), os Papas nos tem incentivado a avançar pacientemente no caminho da unidade. João Paulo II nos exorta: “No corajoso caminho para a unidade, a clareza e prudência da fé nos conduzem a evitar o falso irenismo e o desinteresse pelas normas da Igreja. Inversamente, a mesma clareza e a mesma prudência nos recomendam evitar a indiferença na busca da unidade e, mais ainda, a posição pré-concebida ou o derrotismo que tende a ver tudo como negativo”128. Bento XVI abriu seu pontificado dizendo: “Não bastam as manifestações de bons sentimentos. Fazem falta gestos concretos que penetrem nos espíritos e sacudam as consciências, impulsionando cada um à conversão interior, que é o fundamento de todo progresso no caminho do ecumenismo”129.
5.5.2 relação com o judaísmo e diálogo interreligioso
235. Reconhecemos com gratidão os laços que nos relacionam com o povo judeu, que nos une na fé no único Deus e sua palavra revelada no Antigo Testamento130. São nossos “irmãos maiores” na fé de Abraão, Isaque e Jacó. Dói em nós a história de desencontros que eles tem sofrido, também em nossos países. São muitas as causas comuns que na atualidade exigem maior colaboração e respeito mútuo.
236. Pelo sopro do Espírito Santo e outros meios conhecidos de Deus, a graça de Cristo pode alcançar a todos os que Ele redimiu, além da comunidade eclesial, porém de modos diferentes131. Explicitar e promover esta salvação já operante no mundo é uma das tarefas da Igreja com respeito às palavras do Senhor: “Sejam minhas testemunhas até os extremos da terra” (At 1,8).
237. O diálogo interreligioso, em especial com as religiões monoteístas, fundamenta-se justamente na missão que Cristo nos confiou, solicitando a sábia articulação entre o anúncio e o diálogo como elementos constitutivos da evangelização132. Com tal atitude, a Igreja, “sacramento universal de salvação”133, reflete a luz de Cristo que “ilumina a todo homem” (Jo 1,9). A presença da Igreja entre as religiões não cristãs é feita de empenho, discernimento e testemunho, apoiados na fé, esperança e caridade teologais134.
238. Mesmo quando o subjetivismo e a identidade pouco definida de certas propostas dificultam os contatos, isso não nos permite abandonar o compromisso e a graça do diálogo135. Em lugar de desistir, é necessário investir no conhecimento das religiões, no discernimento teológico-pastoral e na formação de agentes competentes para o diálogo interreligioso, atendendo às diferentes visões religiosas presentes nas culturas de nosso continente. O diálogo interreligioso não significa que deixar de anunciar a Boa Nova de Jesus Cristo aos povos não cristãos, mas com mansidão e respeito por suas convicções religiosas.
239. O diálogo interreligioso, além de seu caráter teológico, tem um especial significado na construção da nova humanidade: abre caminhos inéditos de testemunho cristão, promove a liberdade e dignidade dos povos, estimula a colaboração para o bem comum, supera a violência motivada por atitudes religiosas fundamentalistas, educa para a paz e para a convivência cidadã: é um campo de bem-aventuranças que são assumidas pela Doutrina Social da Igreja.
CAPÍTULO 6
O CAMINHO DE FORMAÇÃO DOS DISCÍPULOS MISSIONÁRIOS
6.1 Uma espiritualidade trinitária do encontro com Jesus Cristo
240. Uma autêntica proposta de encontro com Jesus Cristo deve se estabelecer sobre o sólido fundamento da Trindade-Amor. A experiência de um Deus uno e trino, que é unidade e comunhão inseparável, permite-nos superar o egoísmo para nos encontrar plenamente no serviço para com o outro. A experiência batismal é o ponto de início de toda espiritualidade cristã que se funda na Trindade.
241. É Deus Pai que nos atrai por meio da entrega eucarística de seu Filho (cf. Jo 6,44), dom de amor com o qual saiu ao encontro de seus filhos, para que, renovados pela força do Espírito, possamos chamá-lo de Pai: “Quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou seu próprio Filho, nascido de uma mulher, nascido sob o domínio da lei, para nos libertar do domínio da lei e fazer com que recebêssemos a condição de filhos adotivos de Deus. E porque já somos filhos, Deus enviou o Espírito de seu Filho a nossos corações e o Espírito clama: Abbá! Pai!” (Gl 4,4-5). Trata-se de uma nova criação, onde o amor do Pai, do Filho e do Espírito Santo, renova a vida das criaturas.
242. Na história do amor trinitário, Jesus de Nazaré, homem como nós e Deus conosco, morto e ressuscitado, nos é dado como Caminho, Verdade e Vida. No encontro de fé com o inaudito realismo de sua Encarnação, podemos ouvir, ver com nossos olhos, contemplar e tocar com nossas mãos a Palavra de vida (cf. 1 Jo 1,1), experimentamos que “o próprio Deus vai atrás da ovelha perdida, a humanidade doente e extraviada. Quando em suas parábolas Jesus fala do pastor que vai atrás da ovelha desgarrada, da mulher que procura a dracma, do pai que sai ao encontro de seu filho pródigo e o abraça, não se trata só de meras palavras, mas da explicação de seu próprio ser e agir”136. Esta prova definitiva de amor tem o caráter de um esvaziamento radical (kenosis), porque Cristo “se humilhou a si mesmo fazendo-se obediente até a morte e morte de cruz” (Fl 2,8).
6.1.1 O encontro com Jesus Cristo
243. O acontecimento de Cristo é, portanto, o início desse sujeito novo que surge na história e a quem chamamos discípulo: “Não se começa a ser cristão por uma decisão ética ou uma grande idéia, mas através do encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá um novo horizonte à vida e, com isso, uma orientação decisiva”137. Isto é justamente o que, com apresentações diferentes, todos os evangelhos nos tem conservado como sendo o início do cristianismo: um encontro de fé com a pessoa de Jesus (cf. Jo 1,35-39).
244. A própria natureza do cristianismo consiste, portanto, em reconhecer a presença de Jesus Cristo e segui-lo. Essa foi a maravilhosa experiência daqueles primeiros discípulos que, encontrando Jesus, ficaram fascinados e cheios de assombro frente a excepcional idade de quem lhes falava, diante da maneira como os tratava, coincidindo com a fome e sede de vida que havia em seus corações. O evangelista João nos deixou por escrito o impacto que a pessoa de Jesus produziu nos primeiros discípulos que o encontraram, João e André. Tudo começa com uma pergunta: “que procuram?” (Jo 1,38). A essa pergunta seguiu um convite a viver uma experiência: “venham e verão” (Jo 1,39). Esta narração permanecerá na história como síntese única do método cristão.
245. No hoje do nosso continente latino-americano, levanta-se a mesma pergunta cheia de expectativa: “Mestre, onde vives?” (Jo 1,38), onde te encontramos de maneira adequada para “abrir um autêntico processo de conversão, comunhão e solidariedade?”138 Quais são os lugares, as pessoas, os dons que nos falam de ti, que nos colocam em comunhão contigo e nos permitem ser discípulos e teus missionários?
6.1.2 Lugares de encontro com Jesus Cristo
246. O encontro com Cristo, graças à ação invisível do Espírito Santo, realiza-se na fé recebida e vivida na Igreja. Com as palavras do papa Bento XVI repetimos com certeza: “A Igreja é nossa casa! Esta é nossa casa” Na Igreja católica temos tudo o que é bom, tudo o que é motivo de segurança e de consolo! Quem aceita a Cristo: Caminho, Verdade e Vida, em sua totalidade, tem garantida a paz e a felicidade, nesta e na outra vida!”139.
247. Encontramos Jesus na Sagrada Escritura, lida na Igreja. A Sagrada Escritura, “Palavra de Deus escrita por inspiração do Espírito Santo”140, é, com a Tradição, fonte de vida para a Igreja e alma de sua ação evangelizadora. Desconhecer a Escritura é desconhecer Jesus Cristo e renunciar a anunciá-lo. Daí o convite de Bento XVI: “Ao iniciar a nova etapa que a Igreja missionária da América Latina e do Caribe se dispõe a empreender, a partir desta V Conferência em Aparecida, é condição indispensável o conhecimento profundo e vivencial da Palavra de Deus, Por isto, é necessário educar o povo na leitura e na meditação da palavra: que ela se converta em seu alimento para que, por experiência própria, vejam que as palavras de Jesus são espírito e vida (cf. Jo 6,63). Do contrário, como vão anunciar uma mensagem cujo conteúdo e espírito não conhecem profundamente? É preciso fundamentar nosso compromisso missionário e toda nossa vida na rocha da Palavra de Deus”141.
248. Faz-se, pois, necessário propor aos fiéis a Palavra de Deus como dom do Pai para o encontro com Jesus Cristo vivo, caminho de “autêntica conversão e de renovada comunhão e solidariedade”142. Esta proposta será mediação de encontro com o Senhor se for apresentada a Palavra revelada, contida na Escritura, como fonte de evangelização. Os discípulos de Jesus desejam se alimentar com o Pão da Palavra: querem chegar à interpretação adequada dos textos bíblicos, emprega-los como mediação de diálogo com Jesus Cristo e a que sejam alma da própria evangelização e do anúncio de Jesus a todos. Por isto, a importância de uma “pastoral bíblica”, entendida como animação bíblica da pastoral, que seja escola de interpretação ou conhecimento da Palavra, de comunhão com Jesus ou oração com a Palavra, e de evangelização inculturada ou de proclamação da Palavra. Isto exige por parte dos bispos, presbíteros, diáconos e ministros leigos da Palavra uma aproximação à Sagrada Escritura que não seja só intelectual e instrumental, mas com um coração “faminto de ouvir a Palavra do Senhor” (Am 8,11).
249. Entre as muitas formas de se aproximar da Sagrada Escritura existe uma privilegiada à qual todos estamos convidados: a Lectio divina ou exercício de leitura orante da Sagrada Escritura. Esta leitura orante, bem praticada, conduz ao encontro com Jesus-Mestre, ao conhecimento do mistério de Jesus-Messias, à comunhão com Jesus-Filho de Deus e ao testemunho de Jesus-Senhor do universo. Com seus quatro momentos (leitura, meditação, oração, contemplação), a leitura orante favorece o encontro pessoal com Jesus Cristo semelhante ao modo de tantos personagens do evangelho: Nicodemos e sua ânsia de vida eterna (cf. Jo 3,1-21), a Samaritana e seu desejo de culto verdadeiro (cf. Jo 4,1-12), o cego de nascimento e seu desejo de luz interior (cf. Jo 9), Zaqueu e sua vontade de ser diferente (cf. Lc 19,1-10)... Todos eles, graças a este encontro, foram iluminados e recriados porque se abriram à experiência da misericórdia do Pai que se oferece por sua Palavra de verdade e vida. Não abriram seu coração para algo do Messias, mas ao próprio Messias, caminho de crescimento na “maturidade conforme a sua plenitude” (Ef 4,13), processo de discipulado, de comunhão com os irmãos e de compromisso com a sociedade.
250. Encontramos Jesus Cristo, de modo admirável, na Sagrada Liturgia. Ao vivê-la, celebrando o mistério pascal, os discípulos de Cristo penetram mais nos mistérios do Reino e expressam de modo sacramental sua vocação de discípulos e missionários. A Constituição sobre a Sagrada Liturgia do Vaticano II nos mostra o lugar e a função da liturgia no seguimento de Cristo, na ação missionária dos cristãos, na vida nova em Cristo e na vida de nossos povos n’Ele143.
251. A Eucaristia é o lugar privilegiado do encontro do discípulo com Jesus Cristo. Com este Sacramento, Jesus nos atrai para si e nos faz entrar em seu dinamismo em relação a Deus e ao próximo. Há um estreito vínculo entre as três dimensões da vocação cristã: crer, celebrar e viver o mistério de Jesus Cristo, de tal modo, que a existência cristã adquira verdadeiramente uma forma eucarística. Em cada Eucaristia, os cristãos celebram e assumem o mistério pascal, participando n’Ele. Portanto, os fiéis devem viver sua fé na centralidade do mistério pascal de Cristo através da Eucaristia, de maneira que toda sua vida seja cada vez mais vida eucarística. A Eucaristia, fonte inesgotável da vocação cristã é, ao mesmo tempo, fonte inextinguível do impulso missionário. Ali, o Espírito Santo fortalece a identidade do discípulo e desperta nele a decidida vontade de anunciar com audácia aos demais o que tem escutado e vivido.
252. Entende-se, assim, a grande importância do preceito dominical de “viver segundo o domingo”, com uma necessidade interior do cristão, da família cristã, da comunidade paroquial. Sem uma participação ativa na celebração eucarística dominical e nas festas de preceito não existirá um discípulo missionário maduro. Cada grande reforma na Igreja está vinculada ao redescobrimento da fé na Eucaristia144. Por causa disso, é importante promover a “pastoral do domingo” e dar a ela “prioridade nos programas pastorais”145 para um novo impulso na evangelização do povo de Deus no Continente latino-americano.
253. Com profundo afeto pastoral, queremos dizer, às milhares de comunidades com seus milhões de membros, que não têm a oportunidade de participar da Eucaristia dominical, que também elas podem e devem viver “segundo o domingo”. Elas podem alimentar seu já admirável espírito missionário participando da “celebração dominical da Palavra”, que faz presente o Mistério Pascal no amor que congrega (cf. 1 Jo 3,14), na Palavra acolhida (cf. Jo 5,24-25) e na oração comunitária (cf. Mt 18,20). Sem dúvida, os fiéis devem desejar a participação plena na Eucaristia dominical, pela qual também os motivamos a orar pelas vocações sacerdotais.
254. O sacramento da reconciliação é o lugar onde o pecador experimenta de maneira singular o encontro com Jesus Cristo, que se compadece de nós e nos dá o dom de seu perdão misericordioso, faz-nos sentir que o amor é mais forte que o pecado cometido, nos liberta de tudo o que nos impede de permanecer em seu amor, e nos devolve a alegria e o entusiasmo de anunciá-lo aos demais com o coração aberto e generoso.
255. A oração pessoal e comunitária é o lugar onde o discípulo, alimentado pela Palavra e pela Eucaristia, cultiva uma relação de profunda amizade com Jesus Cristo e procura assumir a vontade do Pai. A oração diária é um sinal do primado da graça no caminho do discípulo missionário. Por isso, “é necessário aprender a orar, voltando sempre a aprender esta arte dos lábios do Mestre”146.
256. Jesus está presente em meio a uma comunidade viva na fé e no amor fraterno. Ali Ele cumpre sua promessa: “Onde estão dois ou três reunidos em meu nome, ali estou eu no meio deles” (Mt 18,20). Ele está em todos os discípulos que procuram fazer sua a existência de Jesus, e viver sua própria vida escondida na vida de Cristo (cf. Cl 3,3). Eles experimentam a força de sua ressurreição até se identificar profundamente com Ele: “Já não vivo eu, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20). Jesus está nos Pastores, que representam o próprio Cristo (cf. Mt 10,40; Lc 10,16). “Os Bispos tem sucedido, por instituição divina, aos Apóstolos, como Pastores da Igreja, de modo que quem os escuta, escuta a Cristo, e quem os despreza, despreza a Cristo e a quem ele enviou” (Lúmen Gentium, 20”. Está naqueles que dão testemunho de luta por justiça, pela paz e pelo bem comum, algumas vezes chegando a entregar a própria vida em todos os acontecimentos da vida de nossos povos, que nos convidam a procurar um mundo mais justo e mais fraterno em toda realidade humana, cujos limites às vezes causam dor e nos agoniam.
257. Também o encontramos de um modo especial nos pobres, aflitos e enfermos (cf. Mt 25,37-40), que exigem nosso compromisso e nos dão testemunho de fé, paciência no sofrimento e constante luta para continuar vivendo. Quantas vezes os pobres e os que sofrem realmente nos evangelizam! No reconhecimento desta presença e proximidade e na defesa dos direitos dos excluídos encontra-se a fidelidade da Igreja a Jesus Cristo147. O encontro com Jesus Cristo através dos pobres é uma dimensão constitutiva de nossa fé em Jesus Cristo. Da contemplação do rosto sofredor de Cristo neles148 e do encontro com Ele nos aflitos e marginalizados, cuja imensa dignidade Ele mesmo nos revela, surge nossa opção por eles. A mesma união a Jesus Cristo é a que nos faz amigos dos pobres e solidários com seu destino.
6.1.3 A piedade popular como lugar de encontro com Jesus Cristo
258. O Santo Padre destacou a “rica e profunda religiosidade popular, na qual aparece a alma dos povos latino-americanos, e a apresentou como “o precioso tesouro da Igreja católica na América Latina”149. Convidou a promovê-la e a protegê-la. Esta maneira de expressar a fé está presente de diversas formas em todos os setores sociais, em uma multidão que merece nosso respeito e carinho, porque sua piedade “reflete uma sede de Deus que somente os pobres e simples podem conhecer”150. A “religião do povo latino-americano é expressão da fé católica. É um catolicismo popular”151, profundamente inculturado, que contem a dimensão mais valiosa da cultura latino-americana.
259. Entre as expressões desta espiritualidade contam-se: as festas patronais, as novenas, os rosários e via crucis, as procissões, as danças e os cânticos do folclore religioso, o carinho aos santos e aos anjos, as promessas, as orações em família. Destacamos as peregrinações onde é possível reconhecer o Povo de Deus no caminho. Ali o cristão celebra a alegria de se sentir imerso em meio a tantos irmãos, caminhando juntos para Deus que os espera. O próprio Cristo se faz peregrino e caminha ressuscitado entre os pobres. A decisão de caminhar em direção ao santuário já é uma confissão de fé, o caminhar é um verdadeiro canto de esperança e a chegada é um encontro de amor. O olhar do peregrino se deposita sobre uma imagem que simboliza a ternura e a proximidade de Deus. O amor se detém, contempla o silêncio, desfruta dele em silêncio. Também se comove, derramando todo o peso de sua dor e de seus sonhos. A súplica sincera, que flui confiadamente, é a melhor expressão de um coração que renunciou à auto-suficiência, reconhecendo que sozinho, nada é possível. Um breve instante sintetiza uma viva experiência espiritual152.
260. Ali, o peregrino vive a experiência de um mistério que o supera, não só da transcendência de Deus, mas também da Igreja, que transcende sua família e seu bairro. Nos santuários, muitos peregrinos tomam decisões que marcam suas vidas. As paredes dos santuários contêm muitas histórias de conversão, de perdão e de dons recebidos que milhões poderiam contar.
261. A piedade popular penetra delicadamente a existência pessoal de cada fiel e ainda que se viva em uma multidão, não é uma “espiritualidade de massas”. Nos diferentes momentos da luta cotidiana, muitos recorrem a algum pequeno sinal do amor de Deus: um crucifixo, um rosário, uma vela que se acende para acompanhar um filho em sua enfermidade, um Pai Nosso recitado entre lágrimas, um olhar entranhável a uma imagem querida de Maria, um sorriso dirigido ao Céu em meio a uma simples alegria.
262. É verdade que a fé que se encarnou na cultura pode ser aprofundada e penetrar cada vez mais na forma de viver de nossos povos. Mas isso só pode acontecer se valorizarmos positivamente o que o Espírito Santo já semeou. A piedade popular é um “imprescindível ponto de partida para conseguir que a fé do povo amadureça e se faça mais fecunda”153. Por isso, o discípulo missionário precisa ser “sensível a ela, saber perceber suas dimensões interiores e seus valores inegáveis”154. Quando afirmamos que é necessário evangelizá-la ou purificá-la, não queremos dizer que esteja privada de riqueza evangélica. Simplesmente desejamos que todos os membros do povo fiel, reconhecendo o testemunho de Maria e também dos santos, procurem imitá-los cada dia mais. Assim procurarão um contato mais direto com a Bíblia e uma maior participação nos sacramentos, chegarão a desfrutar da celebração dominical da Eucaristia e viverão melhor o serviço do amor solidário. Por este caminho será possível aproveitar o mais rico potencial de santidade e de justiça social que encerra a mística popular.
263. Não podemos rebaixar a espiritualidade popular ou considerá-la um modo secundário da vida cristã, porque seria esquecer o primado da ação do Espírito e a iniciativa gratuita do amor de Deus. A piedade popular contém e expressa um intenso sentido da transcendência, uma capacidade espontânea de se apoiar em Deus e uma verdadeira experiência de amor teologal. É também uma expressão de sabedoria sobrenatural, porque a sabedoria do amor não depende diretamente da ilustração da mente, mas da ação interna da graça. Por isso, a chamamos de espiritualidade popular. Ou seja, uma espiritualidade cristã que, sendo um encontro pessoal com o Senhor, integra muito o corpóreo, o sensível, o simbólico e as necessidades mais concretas das pessoas. É uma espiritualidade encarnada na cultura dos simples, que nem por isso é menos espiritual, mas que o é de outra maneira.
264. A piedade popular é uma maneira legítima de viver a fé, um modo de se sentir parte da Igreja e uma forma de ser missionários, onde se recolhem as mais profundas vibrações da América Latina. É parte de uma “originalidade histórica cultural”155 dos pobres deste Continente, e fruto de “uma síntese entre as culturas e a fé cristã”156. No ambiente de secularização que vivem nossos povos, continua sendo uma poderosa confissão do Deus vivo que atua na história e um canal de transmissão da fé. O caminhar juntos para os santuários e o participar em outras manifestações da piedade popular, levando também os filhos ou convidando a outras pessoas, é em si mesmo um gesto evangelizador pelo qual o povo cristão evangeliza a si mesmo e cumpre a vocação missionária da Igreja.
265. Nossos povos se identificam particularmente com o Cristo sofredor, olham-no, beijam-no ou tocam seus pés machucados, como se dissessem: Este é “o que me amou e se entregou por mim” (Gl 2,20). Muitos deles golpeados, ignorados despojados, não abaixam os braços. Com sua religiosidade característica se agarram no imenso amor que Deus tem por eles e que lhes recorda permanentemente sua própria dignidade. Também encontram a ternura e o amor de Deus no rosto de Maria. Nela vem refletida a mensagem essencial do Evangelho. Nossa Mãe querida, desde o santuário de Guadalupe, faz sentir a seus filhos menores que eles estão na dobra de seu manto. Agora, desde Aparecida, convida-os a lançar as redes ao mundo, para tirar do anonimato aqueles que estão submersos no esquecimento e aproximá-los da luz da fé. Ela, reunindo os filhos, integra nossos povos ao redor de Jesus Cristo.
6.1.4 Maria, discípula e missionária
266. A máxima realização da existência cristã como um viver trinitário de “filhos no Filho” nos é dada na Virgem Maria que, através de sua fé (cf. Lc 1,450 e obediência à vontade de Deus (cf. Lc 1,38), assim como por sua constante meditação da Palavra e das ações de Jesus (cf. Lc 2,19.51), é a discípula mais perfeita do Senhor157. Interlocutora do Pai em seu projeto de enviar seu verbo ao mundo para a salvação humana, com sua fé, Maria chega a ser o primeiro membro da comunidade dos crentes em Cristo, e também se faz colaboradora no renascimento espiritual dos discípulos. Sua figura de mulher livre e forte, emerge do Evangelho conscientemente orientada para o verdadeiro seguimento de Cristo. Ela viveu completamente toda a peregrinação da fé como mãe de Cristo e depois dos discípulos, sem que fosse livrada da incompreensão e da busca constante do projeto do Pai. Alcançou, dessa forma, o fato de estar ao pé da cruz em uma comunhão profunda, para entrar plenamente no mistério da Aliança.
267. Com ela, providencialmente unida à plenitude dos tempos (cf. Gl 4,4) chega o cumprimento da esperança dos pobres e do desejo de salvação. A Virgem de Nazaré teve uma missão única na história da salvação, concebendo, educando e acompanhando seu filho até seu sacrifício definitivo. Desde a cruz Jesus Cristo confiou a seus discípulos, representados por João, o dom da maternidade de Maria, que nasce diretamente da hora pascal de Cristo: “E desse momento em diante, o discípulo a recebeu em sua casa” (Jo 19,27). Perseverando junto aos apóstolos à espera do Espírito (cf. At 1,13-14), ela cooperou com o nascimento da Igreja missionária, imprimindo-lhe um selo mariano que a identifica profundamente. Como mãe de tantos, fortalece os vínculos fraternos entre todos, estimula a reconciliação e o perdão e ajuda os discípulos de Jesus Cristo a experimentarem como uma família, a família de Deus. Em Maria, encontramo-nos com Cristo, com o Pai e com o Espírito Santo, assim como com os irmãos.
268. Como na família humana, a Igreja-família é gerada ao redor de uma mãe, que confere “alma” e ternura à convivência familiar158. Maria, Mãe da Igreja, além de modelo e paradigma da humanidade, é artífice de comunhão. Um dos eventos fundamentais da Igreja é quando o “sim” brotou de Maria. Ela atrai multidões à comunhão com Jesus e sua Igreja, como experimentamos muitas vezes nos santuários marianos. Por isso, como a Virgem Maria, a Igreja é mãe. Esta visão mariana da Igreja é o melhor remédio para uma Igreja meramente funcional ou burocrática.
269. Maria é a grande missionária, continuadora da missão de seu Filho e formadora de missionários. Ela, da mesma forma como deu à luz ao Salvador do mundo, trouxe o Evangelho a nossa América. No acontecimento em Guadalupe, presidiu junto com o humilde João Diego, o Pentecostes que nos abriu aos dons do Espírito. A partir desse momento são incontáveis as comunidades que encontraram nela a inspiração mais próxima para aprender como serem discípulos e missionários de Jesus. Com alegria constatamos que ela tem feito parte do caminhar de cada um de nossos povos, entrando profundamente no tecido de sua história e acolhendo as ações mais nobres e significativas de sua gente. Os diversos nomes e os santuários espalhados por todo o Continente testemunham a presença de Maria próxima às pessoas e, ao mesmo tempo, manifestam a fé e a confiança que os devotos sentem por ela. Ela pertence a eles e eles a sentem como mãe e irmã.
270. Hoje, quando em nosso continente latino-americano e caribenho se quer enfatizar o discipulado e a missão, é ela quem brilha diante de nossos olhos como imagem acabada e fidelíssima do seguimento de Cristo. Esta é a hora da seguidora mais radical de Cristo, de seu magistério discipular e missionário conforme nos envia o Papa Bento XVI: Maria Santíssima, a Virgem pura e sem mancha é para nós escola de fé destinada a nos conduzir e a nos fortalecer no caminho que conduz ao encontro com o Criador do céu e da terra. O Papa veio a Aparecida com viva alegria para nos dizer em primeiro lugar: Permaneçam na escola de Maria. Inspirem-se em seus ensinamentos. Procurem acolher e guardar dentro do coração as luzes que ela, por mandato divino, envia a vocês a partir do alto”159.
271. Ela, que “conservava todas estas recordações e meditava em seu coração” (Lc 2,19; cf. 2,51), ensina-nos o primado da escuta da Palavra na vida do discípulo e missionário. O Magnificat “está inteiramente tecido pelos fios da Sagrada Escritura, os fios tomados da palavra de Deus. Assim, se revela que nela a Palavra de Deus se encontra de verdade em sua casa, de onde sai e entra com naturalidade. Ela fala e pensa com a Palavra de Deus; a Palavra de Deus se faz a sua palavra e sua palavra nasce da Palavra de Deus. Além disso, assim se revela que seus pensamentos estão em sintonia com os pensamentos de Deus, que seu querer é um querer junto com Deus. Estando intimamente penetrada pela Palavra de Deus, Ela pode chegar a ser mãe da Palavra encarnada”160. Esta familiaridade com o mistério de Jesus é facilitada pela reza do Rosário, onde: “o povo cristão aprende de Maria a contemplar a beleza do rosto de Cristo e a experimentar a profundidade de seu amor. Mediante o Rosário, o cristão obtém abundantes graças, como recebendo-as das próprias mãos da mãe do Redentor”161.
272. Com os olhos postos em seus filhos e em suas necessidades, como em Caná da Galiléia, Maria ajuda a manter vivas as atitudes de atenção, de serviço, de entrega e de gratuidade que devem distinguir os discípulos de seu Filho. Indica, além do mais, qual é a pedagogia para que os pobres, em cada comunidade cristã, “sintam-se como em sua casa”162. Cria comunhão e educa para um estilo de vida compartilhada e solidária, em fraternidade, em atenção e acolhida do outro, especialmente se é pobre ou necessitado. Em nossas comunidades, sua forte presença tem enriquecido e seguirá enriquecendo a dimensão materna da Igreja e sua atitude acolhedora, que a converte em “casa e escola da comunhão”163 e em espaço espiritual que prepara para a missão.
6.1.5 Os apóstolos e os santos
273. Também os apóstolos de Jesus e os santos marcaram a espiritualidade e o estilo de vida de nossas Igrejas. Suas vidas são lugares privilegiados de encontro com Jesus Cristo. Seu testemunho se mantém vigente e seus ensinamentos inspiram o ser e a ação das comunidades cristãs do Continente. Entre eles, Pedro o apóstolo, a quem Jesus confiou a missão de confirmar a fé de seus irmãos (cf. Lc 22,31-32), ajuda a estreitar o vínculo de comunhão com o Papa, seu sucessor, e a buscar em Jesus as palavras de vida eterna. Paulo, o evangelizador incansável, tem indicado o caminho da audácia missionária e a vontade de se aproximar de cada realidade cultural com a Boa Nova da salvação. João, o discípulo amado do Senhor, tem revelado a força transformadora do mandamento novo e a fecundidade de permanecer em seu amor.
274. Nossos povos nutrem um carinho e especial devoção por José, esposo de Maria, homem justo, fiel e generoso que sabe se perder para se achar no mistério do Filho. São José, o silencioso mestre, fascina, atrai e ensina, não com palavras mas com o resplandecente testemunho de suas virtudes e de sua firme simplicidade.
275. Nossas comunidades levam o selo dos apóstolos e, além disso, reconhecem o testemunho cristão de tantos homens e mulheres que espalharam em nossa geografia as sementes do Evangelho, vivendo valentemente sua fé, inclusive derramando seu sangue como mártires. Seu exemplo de vida e santidade constitui um presente precioso para o caminho cristão dos latino-americanos e, simultaneamente, um estímulo para imitar suas virtudes nas novas expressões culturais da história. Com a paixão de seu amor a Jesus Cristo, eles foram membros ativos e missionários em sua comunidade eclesial. Com valentia, perseveraram na promoção dos direitos das pessoas, foram perspicazes no discernimento crítico da realidade à luz do ensino social da Igreja e críveis pelo testemunho coerente de suas vidas. Nós, cristãos de hoje, acolhemos sua herança e nos sentimos chamados a continuar com renovado ardor apostólico e missionário o estilo evangélico de vida que nos transmitiram.
6.2. O processo de formação dos discípulos missionários
276. A vocação e o compromisso de ser hoje discípulos e missionários de Jesus Cristo na América Latina e no Caribe, requerem uma clara e decidida opção pela formação dos membros de nossas comunidades, a favor de todos os batizados, qualquer que seja a função que desenvolvem na Igreja. Olhamos para Jesus, o Mestre que formou pessoalmente a seus apóstolos e discípulos. Cristo nos dá o método: “Venham e vejam” (Jo 1, 39), “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14,6). Com Ele podemos desenvolver as potencialidades que estão nas pessoas e formar discípulos missionários. Com perseverante paciência e sabedoria, Jesus convidou a todos para que o seguissem e introduziu aqueles que aceitaram segui-lo no mistério do Reino de Deus. Depois de sua morte e ressurreição, enviou-os a pregar a Boa Nova na força do Espírito. Seu estilo se torna emblemático para os formadores e cobra especial relevância quando pensamos na paciente tarefa formativa que a Igreja deve empreender no novo contexto sócio-cultural da América Latina.
277. O caminho de formação do seguidor de Jesus lança suas raízes na natureza dinâmica da pessoa e no convite pessoal de Jesus Cristo, que chama os seus por seu nome e estes o seguem porque conhecem a sua voz. O Senhor despertava as aspirações profundas de seus discípulos e os atraía a si, maravilhados. O seguimento é fruto de uma fascinação que responde ao desejo de realização humana, ao desejo de vida plena. O discípulo é alguém apaixonado por Cristo a quem reconhece como o mestre que o conduz e o acompanha.
6.2.1 Aspectos do processo
278. No processo de formação de discípulos missionários destacamos cinco aspectos fundamentais que aparecem de maneira diversa em cada etapa do caminho, mas que se complementam intimamente e se alimentam entre si:
a) O Encontro com Jesus Cristo: Aqueles que serão seus discípulos já o buscam (cf. Jo 1,38), mas é o Senhor quem os chama: “Segue-me” (Mc 1,14; Mt 9,9). É necessário descobrir o sentido mais profundo da busca, assim como é necessário propiciar o encontro com Cristo que dá origem à iniciação cristã. Este encontro deve se renovar constantemente pelo testemunho pessoal, pelo anúncio do kerigma e pela ação missionária da comunidade. O kerygma não é somente uma etapa, mas o fio condutor de um processo que culmina na maturidade do discípulo de Jesus Cristo. Sem o kerygma, os demais aspectos deste processo estão condenados à esterilidade, sem corações verdadeiramente convertidos ao Senhor. Só a partir do kerygma acontece a possibilidade de uma iniciação cristã verdadeira. Por isso, a Igreja precisa te-lo presente em todas as suas ações.
b) A Conversão: É a resposta inicial de quem escutou o Senhor com admiração, crê n’Ele pela ação do Espírito, decide-se ser seu amigo e ir após Ele, mudando sua forma de pensar e de viver, aceitando a cruz de Cristo, consciente de que morrer para o pecado é alcançar a vida. No Batismo e no sacramento da reconciliação se atualiza para nós a redenção de Cristo.
c) O Discipulado: A pessoa amadurece constantemente no conhecimento, amor e seguimento de Jesus Mestre, aprofunda no mistério de sua pessoa, de seu exemplo e de sua doutrina. Para isso são de fundamental importância a catequese permanente e a vida sacramental, que fortalecem a conversão inicial e permitem que os discípulos missionários possam perseverar na vida cristã e na missão em meio ao mundo que nos desafia.
d) A Comunhão: Não pode existir vida cristã fora da comunidade; seja nas famílias, nas paróquias, nas comunidades de vida consagrada, nas comunidades de base, outras pequenas comunidades e movimentos. Como os primeiros cristãos, que se reuniam em comunidade, o discípulo participa na vida da Igreja e no encontro com os irmãos, vivendo o amor de Cristo na vida fraterna solidária. Ele também é acompanhado e estimulado pela comunidade e seus pastores para amadurecer na vida do Espírito.
e) A Missão: O discípulo, à medida que conhece e ama a seu Senhor, experimenta a necessidade de compartilhar com outros a sua alegria de ser enviado, de ir ao mundo para anunciar Jesus Cristo, morto e ressuscitado, a fazer realidade o amor e o serviço na pessoa dos mais necessitados, em uma palavra, a construir o Reino de Deus. A missão é inseparável do discipulado, o qual não deve ser entendido como uma etapa posterior à formação, ainda que ela seja realizada de diversas maneiras de acordo com a própria vocação e ao momento da maturidade humana e cristã em que se encontre a pessoa.
6.2.2 Critérios gerais
6.2.2.1 Uma formação integral, kerygmática e permanente
279 A missão principal da formação é ajudar os membros da Igreja a se encontrar sempre com Cristo, e assim reconhecer, acolher, interiorizar e desenvolver a experiência e os valores que constituem a própria identidade e missão cristã no mundo. Por isso, a formação obedece a um processo integral, ou seja, que compreende várias dimensões, todas harmonizadas entre si em unidade vital. Na base destas dimensões está a força do anúncio kerygmático. O poder do Espírito e da Palavra contagia as pessoas e as leva a escutar a Jesus Cristo, a crer n’Ele como seu Salvador, a reconhece-lo como quem dá o pleno significado a suas vidas e a seguir seus passos. O anúncio se fundamenta no fato da presença de Cristo Ressuscitado hoje na Igreja, e é fator imprescindível no processo de formação de discípulos e missionários. Ao mesmo tempo, a formação é permanente e dinâmica, de acordo com o desenvolvimento das pessoas e como serviço que são chamadas a prestar, em meios às exigências da história.
6.2.2.2 Uma formação atenta a dimensões diversas
280. A formação abrange diversas dimensões que deverão ser integradas harmonicamente ao longo de todo o processo de formação. Trata-se da dimensão humana comunitária, espiritual, intelectual, comunitária e pastoral-misisonária.
a) A Dimensão Humana e Comunitária. Tende a acompanhar processos de formação que levam a pessoa a assumir a própria história e a curá-la, com o objetivo de se tornar capaz de viver como cristão em um mundo plural, com equilíbrio, fortaleza, serenidade e liberdade interior. Trata-se de desenvolver personalidades que amadureçam em contato com a realidade e abertas ao Mistério.
b) A Dimensão Espiritual: É a dimensão formativa que funda o ser cristão na experiência de Deus manifestado em Jesus e que o conduz pelo Espírito através dos caminhos de um amadurecimento profundo. Por meio dos diversos carismas a pessoa se fundamenta no caminho da vida e do serviço proposto por Cristo, com um estilo pessoal. Assim como a Virgem Maria, essa dimensão permite ao cristão aderir de coração e pela fé aos caminhos alegres, luminosos, dolorosos e gloriosos de seu Mestre e Senhor.
c) A Dimensão Intelectual: O encontro com Cristo, Palavra feita carne, potencializa o dinamismo da razão que procura o significado da realidade e se abre para o Mistério. Ela se expressa em uma reflexão séria, feita diariamente no estudo que abre, com a luz da fé, abre a inteligência à verdade. Também capacita para o discernimento, o juízo crítico e o diálogo sobre a realidade e a cultura. Assegura de uma maneira especial o conhecimento bíblico-teológico e das ciências humanas para adquirir a necessária competência em vista dos serviços eclesiais que se requeira e para a adequada presença na vida secular.
d) A dimensão Pastoral e Missionária: Um autêntico caminho cristão preenche de alegria e esperança o coração e leva o cristão a anunciar a Cristo de maneira constante em sua vida e em seu ambiente. Projeta para a missão de formar discípulos missionários para serviço do mundo. Habilita a propor projetos e estilos de vida cristão atraentes, com intervenções orgânicas e de colaboração fraterna com todos os membros da comunidade. Contribui para integrar evangelização e pedagogia, comunicando vida e oferecendo itinerários de acordo com a maturidade cristã, a idade e outras condições próprias das pessoas ou dos grupos. Incentiva a responsabilidade dos leigos no mundo para construir o Reino de Deus. Desperta uma inquietude constante pelos distanciados e pelos que ignoram o Senhor em suas vidas.
6.2.2.3 Uma formação respeitosa dos processos
281. Chegar à altura de uma vida nova em Cristo, identificando-se profundamente com Ele164 e sua missão, é um caminho longo que requer itinerários diversificados, respeitosos dos processos pessoais e dos ritmos comunitários, contínuos e graduais. Na diocese o eixo central deverá ser um projeto orgânico de formação, aprovado pelo Bispo e elaborado com os organismos diocesanos competentes, levando em consideração todas as forças vivas da Igreja local: associações, serviços e movimentos, comunidades religiosas, pequenas comunidades, comissões de pastoral social e diversos organismos eclesiais que ofereçam a visão do conjunto e da convergência das diversas iniciativas. Requer-se, também, equipes de formação convenientemente preparadas que assegurem a eficácia do próprio processo e que acompanhem as pessoas com pedagogias dinâmicas, ativas e abertas. A presença e contribuição de leigos e leigas nas equipes de formação apresenta uma riqueza original, pois, a partir de suas experiências e competências, eles oferecem critérios, conteúdos e testemunhos valiosos para aqueles que estão se formando.
6.2.2.4 Uma formação que contempla o acompanhamento dos discípulos
282. Cada setor do Povo de Deus requer que a pessoa seja acompanhada e formada de acordo com a peculiar vocação e ministério para o qual tenha sido chamada: o bispo é o princípio da unidade na diocese devido a seu tríplice ministério de ensinar, santificar e governar; os presbíteros cooperam com o ministério do bispo, no cuidado do povo de Deus que lhes foi confiado; os diáconos permanentes no serviço vivificante, humilde e perseverante como ajuda valiosa para os bispos e presbíteros; os consagrados e consagradas no seguimento radical do Mestre; os leigos e leigas cumprem sua responsabilidade evangelizadora colaborando na formação de comunidades cristãs e na construção do Reino de Deus no mundo. Requer-se, portanto, capacitar aqueles que possam acompanhar espiritual e pastoralmente a outros.
283. Destacamos que a formação dos leigos e leigas deve contribuir, antes de mais nada, para sua atuação como discípulos missionários no mundo, na perspectiva do diálogo e da transformação da sociedade. É urgente uma formação específica para que possam ter uma incidência significativa nos diferentes campos, sobretudo, “no mundo vasto da política, da realidade social e da economia, como também da cultura, das ciências e das artes, da vida internacional, dos meios de comunicação e de outras realidades abertas à evangelização”165.
6.2.2.5 Uma formação na espiritualidade da ação missionária
284. É necessário formar os discípulos em uma espiritualidade da ação missionária, que se baseia na docilidade ao impulso do Espírito, a sua potência de vida que mobiliza e transfigura todas as dimensões da existência. Não é uma experiência que se limita aos espaços privados da devoção, mas que procura penetra-lo completamente com seu fogo e sua vida. O discípulo e missionário, movido pelo estímulo e ardor que provêm do Espírito, aprende a expressa-lo no trabalho, no diálogo, no serviço e na missão cotidiana.
285. Quando o impulso do Espírito impregna e motiva todas as áreas da existência, então também penetra e configura a vocação específica de cada pessoa. Assim se forma e desenvolve a espiritualidade própria de presbíteros, de religiosos e religiosas, de pais de família, de empresários, de catequistas, etc. Cada uma das vocações tem um modo concreto e diferente de viver a espiritualidade, que dá profundidade e entusiasmo para o exercício concreto de suas tarefas. Dessa forma, a vida no Espírito não nos fecha em uma intimidade cômoda e fechada, mas sim nos torna pessoas generosas e criativas, felizes no anúncio e no serviço. Torna-nos comprometidos com os sinais da realidade e capazes de encontrar um profundo significado a tudo o que nos toca fazer pela Igreja e pelo mundo.
6.3 Iniciação à vida cristã e catequese permanente
6.3.1 Iniciação à vida cristã
286. São muitos os cristãos que não participam na Eucaristia dominical nem recebem com regularidade os sacramentos, nem se inserem ativamente na comunidade eclesial. Sem esquecer a importância da família na iniciação cristã, este fenômeno nos desafia profundamente a imaginar e organizar novas formas de aproximação deles para ajudá-los a valorizar o sentido da vida sacramental, da participação comunitária e do compromisso cidadão. Temos uma alta porcentagem de católicos sem consciência de sua missão de ser sal e fermento no mundo, com uma identidade cristã fraca e vulnerável.
287. Isto constitui um grande desafio que questiona a fundo a maneira como estamos educando na fé e como estamos alimentando a experiência cristã; um desafio que devemos encarar com decisão, com coragem e criatividade, visto que em muitas partes a iniciação cristã tem sido pobre e fragmentada. Ou educamos na fé, colocando as pessoas realmente em contato com Jesus Cristo e convidando-as para seu seguimento, ou não cumpriremos nossa missão evangelizadora. Impõem-se a tarefa irrenunciável de oferecer uma modalidade de iniciação cristã, que além de marcar o que, dê também elementos para o quem, o como e o onde se realiza. Dessa forma, assumiremos o desafio de uma nova evangelização, à qual temos sido reiteradamente convocados.
288. A iniciação cristã, que inclui o kerygma, é a maneira prática de colocar alguém em contato com Jesus Cristo e iniciá-lo no discipulado. Dá-nos, também, a oportunidade de fortalecer a unidade dos três sacramentos e aprofundar a pessoa em seu rico sentido. A iniciação cristã propriamente falando, refere-se à primeira iniciação nos mistérios da fé, seja na forma do catecumenato batismal para os não batizados, seja na forma do catecumenato pós-batismal para os batizados não suficientemente catequisados. Este catecumenato está intimamente unido aos sacramentos da iniciação: batismo, confirmação e eucaristia, celebrados solenemente na Vigília Pascal. Teríamos que distingui-la, portanto, de outros processos catequéticos e de formação que podem ter a iniciação cristã como base.
6.3.2 Proposta para a iniciação cristã
289. Sentimos a urgência de desenvolver em nossas comunidades um processo de iniciação na vida cristã que comece pelo kerygma que guiado pela Palavra de Deus, que conduza a um encontro pessoal, cada vez maior, com Jesus Cristo, perfeito Deus e perfeito homem166, experimentado como plenitude da humanidade e que leve à conversão, ao seguimento em uma comunidade eclesial e a um amadurecimento de fé na prática dos sacramentos, do serviço e da missão.
290. Recordamos que o caminho de formação do cristão na tradição mais antiga da Igreja “teve sempre um caráter de experiência, na qual era determinante o encontro vivo e persuasivo com Cristo, anunciado por autênticas testemunhas”167. Trata-se de uma experiência que introduz o cristão numa profunda e feliz celebração dos sacramentos, com toda a riqueza de seus sinais. Deste modo, a vida vem se transformando progressivamente pelos santos mistérios que se celebram, capacitando o cristão a transformar o mundo. Isto é o que se chama “catequese mistagógica”.
291. Ser discípulo é um dom destinado a crescer. A iniciação cristã dá a possibilidade de uma aprendizagem gradual no conhecimento, no amor e no seguimento de Cristo. Dessa forma, ela forja a identidade cristã com as convicções fundamentais e acompanha a busca do sentido da vida. É necessário assumir a dinâmica catequética da iniciação cristã. Uma comunidade que assume a iniciação cristã renova sua vida comunitária e desperta seu caráter missionário. Isto requer novas atitudes pastorais por parte dos bispos, presbíteros, diáconos, pessoas consagradas e agentes de pastoral.
292. Como características do discípulo que indica a iniciação cristã destacamos; que ele tenha como centro a pessoa de Jesus Cristo, nosso Salvador e plenitude de nossa humanidade, fonte de toda maturidade humana e cristã; que tenha o espírito de oração, seja amante da Palavra, pratique a confissão freqüente e participe da Eucaristia; que se insira cordialmente na comunidade eclesial e social, seja solidário no amor e um fervoroso missionário.
293. A paróquia precisa ser o lugar onde se assegure a iniciação cristã e terá como tarefas irrenunciáveis: iniciar na vida cristã os adultos batizados e não suficientemente evangelizados; educar na fé as crianças batizadas em um processo que os leve a completar sua iniciação cristã; iniciar os não batizados que, havendo escutado o kerygma, querem abraçar a fé. Nesta tarefa, o estudo e a assimilação do Ritual de Iniciação Cristã de Adultos é uma referência necessária e um apoio seguro.
294. Assumir esta iniciação cristã exige não só uma renovação de modalidade catequética da paróquia. Propomos que o processo catequético de formação adotado pela Igreja para a iniciação cristã seja assumido em todo o Continente como a maneira ordinária e indispensável de introdução na vida cristã e como a catequese básica e fundamental. Depois, virá a catequese permanente que continua o processo de amadurecimento da fé, na qual se deve incorporar um discernimento vocacional e a iluminação para projetos pessoais de vida.
6.3.3 Catequese permanente
295. Quanto a situação atual da catequese, é evidente que tem havido um progresso. Tem crescido o tempo que se dedica à preparação para os sacramentos. Tem-se tomado maior consciência de sua necessidade tanto nas famílias como entre os pastores. Compreende-se que ela é imprescindível em toda formação cristã. Tem-se constituído ordinariamente comissões diocesanas e paroquiais de catequese. É admirável o grande número de pessoas que se sentem chamadas a se fazer catequistas, com grande entrega. A elas, esta Assembléia manifesta um sincero reconhecimento.
296. No entanto, apesar da boa vontade, a formação teológica e pedagógica dos catequistas não costuma ser a desejável. Os materiais são com freqüência muito variados e não se integram em uma pastoral de conjunto; e nem sempre são portadores de métodos pedagógicos atualizados. Os serviços de catequese das paróquias frequentemente carecem de uma colaboração próxima das famílias. Os párocos e demais responsáveis não assumem com maior empenho a função que lhes corresponde como primeiros catequistas.
297. Os desafios que apresenta a situação da sociedade na América latina e no Caribe requerem uma identidade católica mais pessoal e fundamentada. O fortalecimento desta identidade passa por uma catequese adequada que promova uma adesão pessoal e comunitária a Cristo, sobretudo aos mais fracos na fé168. É uma tarefa que incumbida a toda a comunidade de discípulos, mas de maneira especial a nós que, como bispos, temos sido chamados a servir à Igreja, pastoreando-a, conduzindo-a ao encontro com Jesus e ensinando-a a viver tudo o que Ele nos tem mandado (cf. Mt 28,19-20).
298. A catequese não deve ser só ocasional, reduzida a momentos prévios aos sacramentos ou à iniciação cristã, mas sim “um itinerário catequético permanente”169. Por isto, compete a cada Igreja local, com a ajuda das Conferências Episcopais, estabelecer um processo catequético orgânico e progressivo que se propague por toda a vida, desde a infância até a terceira idade, levando em consideração que o Diretório Geral de catequese considera a catequese de adultos como a forma fundamental da educação na fé. Para que o povo conheça a fundo e verdadeiramente a Cristo e o siga fielmente dele eve ser conduzido especialmente na leitura e meditação da Palavra de Deus, que é o primeiro fundamento de uma catequese permanente170.
299. A catequese não pode se limitar a uma formação meramente doutrinal, mas precisa ser uma verdadeira escola de formação integral. Portanto, é necessário cultivar a amizade com Cristo na oração, o apreço pela celebração litúrgica, a experiência comunitária, o compromisso apostólico mediante um permanente serviço aos demais. Para isso, seriam úteis alguns subsídios catequéticos elaborados a partir do Catecismo da Igreja Católica e do Compêndio da Doutrina Social da Igreja, estabelecendo cursos e escolas de formação permanente aos catequistas.
300. Deve ser dada uma catequese apropriada que acompanhe a fé já presente na religiosidade popular. Uma maneira concreta pode ser oferecer um processo de iniciação cristã em visitas às famílias, onde não só seja comunicado elas os conteúdos da fé, mas que também as conduza à prática da oração familiar, à leitura orante da Palavra de Deus e ao desenvolvimento das virtudes evangélicas, que as consolidem cada vez mais como Igrejas domésticas. Para este crescimento na fé, também é conveniente aproveitar pedagogicamente o potencial educativo presente na piedade popular mariana. Trata-se de um caminho educativo que, cultivando o amor pessoal à Virgem, verdadeira “educadora na fé”171 que nos leva a nos assemelhar cada vez mais a Jesus Cristo, provoque a apropriação progressiva de suas atitudes.
6.4 Lugares de formação para os discípulos missionários
301. A seguir, consideraremos brevemente alguns lugares de formação de discípulos missionários.
6.4.1 A Família, primeira escola da fé
302. A família, “patrimônio da humanidade”, constitui um dos tesouros mais valiosos dos povos latino-americanos. Ela tem sido e é o lugar e escola de comunhão, fonte de valores humanos e cívicos, lar no qual a vida humana nasce e se acolhe generosa e responsavelmente. Para que a família seja “escola de fé” e possa ajudar os pais a serem os primeiros catequistas de seus filhos, a pastoral familiar deve oferecer espaços de formação, materiais catequéticos, momentos celebrativos, que lhes permitam cumprir sua missão educativa. A família é chamada a introduzir os filhos no caminho da iniciação cristã . A família, pequena Igreja, deve ser, junto com a Paróquia, o primeiro lugar para a iniciação cristã das crianças172. Ela oferece aos filhos um sentido cristão de existência e os acompanha na elaboração de seu projeto de vida, como discípulos missionários.
303. É, além disso, um dever dos pais, através especialmente através de seu exemplo de vida, a educação dos filhos para o amor com dom de si mesmos e a ajuda que eles prestam para descobrir sua vocação de serviço, seja na vida laica como na vida consagrada. Deste modo, opera-se a formação dos filhos como discípulos de Jesus Cristo, nas experiências da vida diária na família cristã. Os filhos têm o direito de poder contar com o pai e a mãe para que cuidem deles e os acompanhem até a plenitude de vida. A “catequese familiar”, implementada de diversas maneiras, tem-se revelado como uma ajuda eficiente à unidade das famílias, oferecendo, além disso, uma possibilidade eficiente de formar os pais de família, os jovens e as crianças, para que sejam testemunhas firmes da fé em suas respectivas comunidades.
6.4.2 As Paróquias
304. A dimensão comunitária é intrínseca ao mistério e à realidade da Igreja que deve refletir a Santíssima Trindade. Esta dimensão especial tem sido vivida de diversas maneiras ao longo dos séculos. A Igreja é comunhão. As Paróquias são células vivas da Igreja173 e os lugares privilegiados em que a maioria dos fiéis tem uma experiência concreta de Cristo e de sua Igreja174. Encerram uma imensa riqueza comunitária porque nelas se encontra uma imensa variedade de situações, de idades, de tarefas. Sobretudo hoje, quando as crises da vida familiar afeta a tantas crianças e jovens, as Paróquias oferecem um espaço comunitário para se formar na fé e crescer comunitariamente.
305. Portanto, deve se cultivar a formação comunitária especialmente na paróquia. Com diversas celebrações e iniciativas, principalmente com a Eucaristia dominical, que é “momento privilegiado do encontro das comunidades com o Senhor ressuscitado”175, os fiéis devem experimentar a paróquia como uma família na fé e na caridade, onde mutuamente se acompanhem e se ajudem no seguimento de Cristo.
306. Se queremos que as paróquias sejam centros de irradiação missionária em seus próprios territórios, elas devem ser também lugares de formação permanente. Isto requer que se organizem nelas várias instâncias formativas que assegurem o acompanhamento e o amadurecimento de todos os agentes pastorais e dos leigos inseridos no mundo. As paróquias vizinhas também podem unir esforços neste sentido, sem desperdiçar as ofertas formativas da Diocese e da Conferência Episcopal.
6.4.3 Pequenas comunidades eclesiais
307. Constata-se que nos últimos anos está crescendo a espiritualidade de comunhão e que, com diversas metodologias, não poucos esforços tem sido feitos para levar os leigos a se integrar nas pequenas comunidades eclesiais, que vão mostrando frutos abundantes. Nas pequenas comunidades eclesiais temos um meio privilegiado para chegar a Nova Evangelização e para chegar a que os batizados vivam como autênticos discípulos e missionários de Cristo.
308. Elas são um ambiente propício para se escutar a Palavra de Deus, para viver a fraternidade, para animar na oração, para aprofundar processos de formação na fé e para fortalecer o exigente compromisso de ser apóstolos na sociedade de hoje. Elas são lugares de experiência cristã e evangelização que, em meio à situação cultural que nos afeta, secularizada e hostil à Igreja, se fazem muito mais necessários.
309. Se desejamos pequenas comunidades vivas e dinâmicas, é necessário despertar nelas uma espiritualidade sólida, baseada na Palavra de Deus, que as mantenham em plena comunhão de vida e ideais com a Igreja local e, em particular, com a comunidade paroquial. Por outro lado, conforme Há anos estamos propondo na América Latina, a Paróquia chegará a ser “comunidade de comunidades”176.
310. Destacamos que é preciso reanimar os processos de formação de pequenas comunidades no Continente, pois nelas temos uma fonte segura de vocações ao sacerdócio, à vida religiosa e à vida leiga com especial dedicação ao apostolado. Através das pequenas comunidades, poderia-se também conseguir chegar aos afastados, aos indiferentes e aos que alimentam descontentamento ou ressentimento em relação à Igreja.
6.4.4 Os movimentos eclesiais e novas comunidades
311. Os novos movimentos e comunidades são um dom do Espírito Santo para a Igreja. Neles, os fiéis encontram a possibilidade de se formar na fé cristã, crescer e se comprometer apostolicamente até ser verdadeiros discípulos missionários. Assim exercitam o direito natural e batismal de livre associação, como o indicou o Concílio vaticano II177 e confirma o Código de Direito Canônico. Seria conveniente incentivarr a alguns movimentos e associações que mostram hoje certo cansaço ou fraqueza e convida-los a renovar seu carisma original, que não deixa de enriquecer a diversidade com que o Espírito se manifesta e atua no povo cristão.
312. Os movimentos e novas comunidades constituem uma valiosa contribuição na realização da Igreja local. Por sua própria natureza expressam a dimensão carismática da Igreja: “na Igreja não há contraste ou contraposição entre a dimensão institucional e a dimensão carismática, da qual os movimentos são uma expressão significativa, porque ambos são igualmente essenciais para a constituição divina do Povo de Deus”178. Na vida e na ação evangelizadora da Igreja, constatamos que no mundo moderno devemos responder a novas situações e necessidades da vida cristã. Neste contexto também os movimentos e novas comunidades são uma oportunidade para que muitas pessoas afastadas possam ter uma experiência de encontro vital com Jesus Cristo e, assim, recuperar sua identidade batismal e sua ativa participação na vida da Igreja179. Neles “podemos ver a multiforme presença e ação santificadora do Espírito”180.
313. Para aproveitar melhor os carismas e serviços dos movimentos eclesiais no campo da formação dos leigos desejamos respeitar seus carismas e sua originalidade, procurando que se integrem mais plenamente na estrutura originária que acontece na diocese. Ao mesmo tempo, é necessário que a comunidade diocesana acolha a riqueza espiritual e apostólica dos movimentos. É verdade que os movimentos devem manter sua especificidade, mas dentro de uma profunda unidade com a Igreja local, não só de fé mas de ação. Quanto mais se multiplicar a riqueza dos carismas, mais os bispos serão chamados a exercer o discernimento espiritual para favorecer a necessária integração dos movimentos na vida diocesana, apreciando a riqueza de sua experiência comunitária, formativa e missionária. Convêm dar especial acolhida e valorização àqueles movimentos eclesiais que já passaram pelo reconhecimento e discernimento da Santa Sé, considerados como dons e bens para a Igreja universal.
6.4.5 Os Seminários e Casas de formação religiosa
314. No que se refere à formação dos discípulos e missionários de Cristo ocupa um lugar particular a pastoral vocacional, que acompanha cuidadosamente todos os que o Senhor chama a servir à Igreja no sacerdócio, na vida consagrada ou no estado de leigo. A pastoral vocacional, que é responsabilidade de todo o povo de Deus, começa na família e continua na comunidade cristã, deve se dirigir às crianças e especialmente aos jovens para ajudá-los a descobrir o sentido da vida e o projeto que Deus tem para cada um, acompanhando-os em seu processo de discernimento. Plenamente integrada no âmbito da pastoral ordinária, a pastoral vocacional é fruto de uma sólida pastoral de conjunto, nas famílias, na paróquia, nas escolas católicas e nas demais instituições eclesiais. É necessário intensificar de diversas maneiras a oração pelas vocações, com as quais também se contribui para criar uma maior sensibilidade e receptividade diante do chamado do Senhor; assim como promover e coordenar diversas iniciativas vocacionais181. As vocações são dom de Deus, portanto, em cada diocese, não devem faltar orações especiais ao “Dono da messe”.
315. Diante da escassez de pessoas que respondam à vocação ao sacerdócio e à vida consagrada na América Latina e no Caribe, é urgente dedicar um cuidado especial à promoção vocacional, cultivando os ambientes nos quais nascem as vocações ao sacerdócio e à vida consagrada, com a certeza de que Jesus continua chamando discípulos e missionários para estar com Ele e para enviá-los a pregar o Reino de Deus. Esta V Conferência faz um chamado urgente a todos os cristãos e especialmente aos jovens para que estejam abertos a uma possível chamada de Deus ao sacerdócio ou à vida consagrada; recorda que o Senhor dará a graça necessária para responder com decisão e generosidade, apesar dos problemas gerados por uma cultura secularizada, centralizada no consumismo e no prazer. Convidamos as famílias a reconhecerem a benção de ter um filho chamado por Deus para esta consagração e a apoiar sua decisão e seu caminho de resposta vocacional. Aos sacerdotes, estimulamo-os a dar testemunho de vida feliz, alegre, entusiástica e de santidade no serviço do Senhor.
316. Sem dúvida, os seminários e as casas de formação constituem um lugar privilegiado – escola e casa - para a formação de discípulos e missionários. O tempo da primeira formação é uma etapa onde os futuros presbíteros compartilham a vida a exemplo da comunidade apostólica ao redor do Cristo ressuscitado: oram juntos, celebram uma mesma liturgia que culmina na Eucaristia, a partir da palavra de Deus recebem os ensinamentos que vão iluminando sua mente e modelando seu coração para o exercício da caridade fraterna e da justiça, prestam serviços pastorais periodicamente a diversas comunidades, preparando-se assim para viver uma sólida espiritualidade de comunhão com Cristo Pastor e docilidade à ação do Espírito Santo, convertendo-se em sinal pessoal e atrativo de Cristo no mundo, segundo o caminho de santidade próprio do ministério sacerdotal182.
317. Reconhecemos o esforço dos formadores dos Seminários. Seu testemunho e preparação são decisivos para o acompanhamento dos seminaristas para um amadurecimento afetivo que os faça aptos para abraçar o celibato e capazes de viver em comunhão com seus irmãos na vocação sacerdotal; neste sentido, os cursos de formadores que se tem implementado são um meio eficaz de ajuda a sua missão183.
318. A realidade atual exige de nós maior atenção aos projetos de formação dos Seminários, pois os jovens são vítimas da influência negativa da cultura pós-moderna, especialmente dos meios de comunicação, trazendo consigo a fragmentação da personalidade, a incapacidade de assumir compromisso definitivos, a ausência de maturidade humana, o enfraquecimento da identidade espiritual, entre outros, que dificultam o processo de formação de autênticos discípulos e missionários. Por isso, antes do ingresso no Seminário, é necessário que os formadores e responsáveis façam uma esmerada seleção dos candidatos que leve em consideração o equilíbrio psicológico de uma sã personalidade, uma motivação genuína de amor a Cristo, à Igreja, ao mesmo tempo que capacidade intelectual adequada às exigências do ministério no tempo atual184.
319. É necessário um projeto de formação do Seminário que ofereça aos seminaristas um verdadeiro processo integral: humano, espiritual, intelectual e pastoral, centrado em Jesus Cristo, Bom pastor. É fundamental que, durante os anos de formação, os seminaristas sejam autênticos discípulos, chegando a realizar um verdadeiro encontro pessoal com Jesus Cristo na oração com a palavra, para que estabeleçam com Ele relações de amizade e amor, assegurando um autêntico processo de iniciação espiritual, especialmente, no Período Propedêutico. A espiritualidade que se promove deverá responder à identidade da própria vocação, seja diocesana ou religiosa185.
320. Ao longo da formação, procurar-se-á desenvolver um amor terno e filial a Maria, de maneira que cada formando chegue a ter com ela uma espontânea familiaridade e a “acolha em sua casa” como o discípulo amado. Ela oferecerá aos sacerdotes força e esperança nos momentos difíceis e os estimulará a ser incessantemente discípulos missionários para o Povo de Deus.
321. Especial atenção deverá ser prestada ao processo de formação humana para a maturidade, de tal maneira que a vocação ao sacerdócio ministerial dos candidatos chegue a ser para cada um deles um projeto de vida estável e definitivo, em meio a uma cultura que exalta o descartável e o provisório. Diga-se o mesmo da educação para o amadurecimento da afetividade e da sexualidade. Esta deve levar a compreender melhor o significado evangélico do celibato consagrado como valor que configura a Jesus Cristo, portanto, como um estado de amor, fruto do dom precioso da graça divina, segundo o exemplo da doação nupcial do Filho de Deus; a acolhê-lo como tal com firme decisão, com magnanimidade e de todo o coração e a vivê-lo com serenidade e fiel perseverança, com a devida ascese em um caminho pessoal e comunitário, como entrega a Deus e aos demais com o coração pleno e indivisível186.
322. Em todo o processo de formação, o ambiente do Seminário e da pedagogia formativa deverão cuidar do clima de sã liberdade e de responsabilidade pessoal, evitando criar ambientes artificiais ou itinerários impostos. A opção do candidato pela vida e ministério sacerdotal deve amadurecer e se apoiar em motivações verdadeiras e autênticas, livres e pessoais. A isso se orienta a disciplina nas casas de formação. As experiências pastorais, discernidas e acompanhadas no processo de formação são sumamente importantes para confirmar a autenticidade das motivações no candidato e a ajudá-lo a assumir o ministério como um verdadeiro e generoso serviço, no qual o ser e o agir, pessoa consagrada e ministério, são realidades inseparáveis.
323. Ao mesmo tempo, o Seminário deverá oferecer uma formação intelectual séria e profunda, no campo da filosofia, das ciências humanas e, especialmente, da teologia e da missiologia, a fim de que o futuro sacerdote aprenda a anunciar a fé em toda a sua integridade, fiel ao Magistério da Igreja, com atenção crítica atento ao contexto cultural de nosso tempo e às grandes correntes de pensamento e de conduta que deverá evangelizar. Simultaneamente, deverá se reforçar o estudo da palavra de Deus no acadêmico nos diversos campos de formação, procurando que a palavra de Deus divina não se reduza só a noções, mas que seja uma verdade de espírito e vida que ilumine e alimente toda a existência. Portanto, será necessário contar em cada seminário com o número suficiente de professores bem preparados187.
324. É indispensável confirmar que os candidatos sejam capazes de assumir as exigências da vida comunitária, o que implica diálogo, capacidade de serviço, humildade, valorização dos carismas alheios, disposição para se deixar interpelar pelos outros, obediência ao bispo e abertura para crescer em comunhão missionária com os presbíteros, diáconos, religiosos e leigos, servindo à unidade na diversidade. A Igreja necessita de sacerdotes e consagrados que nunca percam a consciência de serem discípulos em comunhão.
325. Os jovens provenientes de famílias pobres ou de grupos indígenas, requerem uma formação inculturada, ou seja, devem receber a adequada formação teológica e espiritual para seu futuro ministério, sem que isso faça perder suas raízes e, desta forma, possam ser evangelizadores próximos a seus povos e culturas188.
326. É oportuno indicar a complementaridade entre a formação iniciada no Seminário e o processo de formação que abrange as diversas etapas de vida do presbítero. É necessário despertar a consciência de que a formação só termina com a morte. A formação permanente “é um dever principalmente para os sacerdotes jovens e precisa ter aquela freqüência e programação de encontros que, simultaneamente, prolongam a seriedade e a solidez da formação recebida no seminário, levem progressivamente os jovens presbíteros a compreender e viver a singular riqueza do “dom” de Deus – o sacerdócio – e a desenvolver suas potencialidades e aptidões ministeriais, também mediante uma inserção cada vez mais convencida e responsável no presbitério e, portanto, na comunhão e na co-responsabilidade com todos os irmãos189” Em relação a isso, requerem-se projetos diocesanos bem articulados e constantemente avaliados.
327. As casas e os centros de formação da Vida Religiosa são também lugares privilegiados de discipulado e de formação dos missionários e missionárias, segundo o carisma próprio de cada instituto religioso.
6.4.6 A Educação Católica
328. A América latina e o Caribe vivem uma particular e delicada emergência educativa. Na verdade, as novas formas educacionais de nosso continente, impulsionadas para se adaptar às novas exigências que vão se criando com a mudança global, aparecem centradas prioritariamente na aquisição de conhecimentos e habilidades e denotam um claro reducionismo antropológico, visto que concebem a educação preponderantemente em função da produção, da competitividade e do mercado. Por outro lado, com freqüência, elas propiciam a inclusão de fatores contrários á vida, a família e a uma sã sexualidade. Desta forma, elas não manifestam os melhores valores do jovens nem seu espírito religioso; menos ainda ensinam-lhes os caminhos para superar a violência e se aproximar da felicidade, nem os ajudam a levar uma vida sóbria e adquirir aquelas atitudes, virtudes e costumes que tornariam estável o lar que estabelecessem, e que os converteriam em construtores solidários da paz e do futuro da sociedade190.
329. Diante desta situação, fortalecendo a estreita colaboração com os pais de família e pensando em uma educação de qualidade à que tem direito, sem distinção, todos os alunos e alunas de nossos povos, é necessário insistir no autêntico fim de toda escola. Ela é chamada a se transformar, antes de mais nada, em lugar privilegiado de formação e promoção integral, mediante a assimilação sistemática e crítica da cultura, fato que consegue mediante um encontro vivo e vital com o patrimônio cultural. Isto supõe que esse encontro se realize na escola em forma de elaboração, ou seja, confrontando e inserindo os valores perenes no contexto atual. Na realidade, a cultura, para ser educativa, deve se inserir nos problemas do tempo no qual se desenvolve a vida do jovem. Desta maneira, as diferentes disciplinas precisam se apresentar não só um saber por adquirir, mas valores por assimilar e verdades por descobrir.
330. Constitui uma responsabilidade estrita da escola, enquanto instituição educativa, destacar a dimensão ética e religiosa da cultura, precisamente com o objetivo de ativar o dinamismo espiritual do sujeito e de ajudá-lo a alcançar a liberdade ética que pressupõe e aperfeiçoa à psicológica.. Mas não se dá liberdade ética, a não ser na confrontação com os valores absolutos dos quais depende o sentido e o valor da vida do ser humano. Inclusive no âmbito da educação, manifesta-se a tendência a assumir a realidade como parâmetro dos valores, correndo dessa forma o perigo de responder a aspirações secundárias e superficiais, e de perder de vista as exigências mais profundas do mundo contemporâneo (E.C. 30). A educação, humaniza e personaliza o ser humano quando consegue que este desenvolva plenamente seu pensamento e sua liberdade, fazendo-o frutificar em hábitos de compreensão e em iniciativas de comunhão com a totalidade da ordem real. Desta maneira, o ser humano humaniza seu mundo, produz cultura, transforma a sociedade e constrói a história191.
6.4.6.1 Os centros educativos católicos
331. A missão primária da Igreja é anunciar o Evangelho de maneira tal que garanta a relação entre a fé e a vida tanto na pessoa individual como no contexto sócio-cultural em que as pessoas vivem, atuam e se relacionam entre si, Assim mediante a força do Evangelho, a Igreja procura “transformar os critérios de juízo, os valores determinantes, os pontos de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanidade que estão em contraste com a Palavra de Deus e o desígnio de salvação”192.
332. Portanto, quando falamos de uma educação cristã, entendemos que o mestre educa para um projeto de ser humano no qual habite Jesus Cristo com o poder transformador de sua vida nova. Existem muitos aspectos nos quais se educa e entre os quais consta o projeto educativo. Existem muitos valores, mas estes valores nunca estão sozinhos, sempre formam uma constelação ordenada, explícita ou implicitamente. Se a ordenação tem a Cristo como fundamento e fim, então esta educação está recapitulando tudo em Cristo e é uma verdadeira educação cristã; se não, pode falar de Cristo, mas corre o perigo de não ser cristã193.
333. Deste modo, é produzida uma identificação entre os dois aspectos. Isto significa que não se concebe a possibilidade de se anunciar o Evangelho sem que este ilumine, infunda alento e esperança e inspire soluções adequadas aos problemas da existência; muito menos que possa se pensar em uma verdadeira e plena promoção do ser humano sem abri-lo a Deus e anunciar-lhe Jesus Cristo194
334. Em suas escolas, a Igreja é chamada a promover uma educação centrada na pessoa humana que é capaz de viver na comunidade. Diante do fato de que muitos se encontram excluídos, a Igreja deverá estimular uma educação de qualidade para todos, formal e não-formal, especialmente para os mais pobres. Uma educação que ofereça ás crianças, aos jovens e aos adultos o encontro com os valores culturais do próprio país, descobrindo ou integrando neles a dimensão religiosa e transcendente. Para isso, necessitamos de uma pastoral da educação dinâmica e que acompanhe os processos educativos, que seja voz, que legitime e salvaguarde a liberdade de educação diante do Estado e o direito a uma educação de qualidade para os mais despossuídos.
335. Deste modo, estamos em condições de afirmar que no projeto educativo da escola católica, Cristo o Homem perfeito, é o fundamento em quem todos os valores humanos encontram sua plena realização e, a partir daí, sua unidade. Ele revela e promove o sentido novo da existência e a transforma, capacitando o homem e a mulher a viverem de maneira divina; ou seja, para pensar, querer e agir segundo o Evangelho, fazendo das bem-aventuranças a norma de suas vidas. Precisamente pela referência explícita e compartilhada por todos os membros da comunidade escolar, a visão cristã – ainda que em grau diverso, e respeitando a liberdade de consciência e religiosa dos não cristãos presentes nela - a educação é “católica”, pois os princípios evangélicos se convertem para ela em normas educativas, motivações interiores e, ao mesmo tempo, em metas finais. Este é o caráter especificamente católico da educação. Jesus Cristo, pois, eleva e enobrece a pessoa humana, dá valor a sua existência e constitui o perfeito exemplo de vida. Esta é a melhor notícia, proposta pelos centros de formação católica aos jovens195.
336. Portanto, a meta que a escola católica se propõe com relação às crianças e jovens, é a de conduzir ao encontro com Jesus Cristo vivo, Filho do Pai, irmão e amigo, Mestre e Pastor misericordioso, esperança, caminho, verdade e vida e, dessa forma, à vivência da aliança com Deus e com os homens. Faz isso colaborando na construção da personalidade dos alunos, tendo Cristo como referência no plano da mentalidade e da vida. Tal referência, ao se fazer progressivamente explícita e interiorizada, ajudará a ver a história com Cristo a vê, a julgar a vida como Ele faz, a escolher e amar como Ele, a cultivar a esperança como Ele nos ensina e a viver n’Ele a comunhão com o Pai e o Espírito Santo. Pela fecundidade misteriosa desta referência, a pessoa se constrói na unidade existencial, isto é, assume suas responsabilidades e procura o significado último de sua vida. Situada na Igreja, comunidade de cristãos, ela consegue com liberdade viver intensamente a fé, anunciá-la e celebrá-la com alegria na realidade de cada dia. Como conseqüência, amadurecem e parecem co-naturais as atitudes humanas que levam a se abrir sinceramente à verdade, a respeitar e amar as outras pessoas, a expressar sua própria liberdade na doação de si e no serviço aos demais para a transformação da sociedade.
337. A Escola católica é chamada a uma profunda renovação. Devemos resgatar a identidade católica de nossos centros educativos por meio de um impulso missionário corajoso e audaz, de modo que chegue a ser uma opção profética plasmada em uma pastoral da educação participativa. Tais projetos devem promover a formação integral da pessoa, tendo seu fundamento em Cristo, com identidade eclesial e cultural, e com excelência acadêmica. Além disso, há de gerar solidariedade e caridade para com os mais pobres. O acompanhamento dos processos educativos, a participação dos pais de família neles e a formação de docentes, são tarefas prioritárias da pastoral educativa.
338. Propõe-se que nas instituições católicas a educação na fé seja integral e transversal em todo o currículo, levando em consideração o processo de formação para encontrar a Cristo e para viver como discípulos e missionários e inserindo nela verdadeiros processos de iniciação cristã. Ao mesmo tempo, recomenda-se que a comunidade educativa (diretores, mestres, pessoal administrativo, alunos, pais de família, etc) enquanto autêntica comunidade eclesial e centro de evangelização, assuma seu papel de formadora de discípulos e missionários em todos seus estratos. Que, a partir dali, em comunhão com a comunidade cristã que é sua matriz, promova um serviço pastoral no setor em que se insere, especialmente aos jovens, à família, na catequese e na promoção humana dos mais pobres. Estes objetivos são essenciais nos processos de admissão de alunos, de suas famílias e na contratação dos docentes.
339. Um princípio irrenunciável para a Igreja é a liberdade de ensino. O amplo exercício do direito á educação, como condição para sua autêntica realização, reivindica por sua vez, a plena liberdade que deve gozar toda pessoa na escolha educação de seus filhos que considere mais adequada aos valores que eles mais estimam e que consideram indispensáveis. Pelo fato de haver dado a vida aos filhos, os pais assumiram a responsabilidade de oferecer a eles condições favoráveis para seu crescimento e a séria obrigação de educá-los. A sociedade precisa reconhecê-los como os primeiros e principais educadores. O dever da educação familiar, como primeira escola de virtudes sociais, é de tanta transcendência que, quando falta, dificilmente pode ser suprida. Este princípio é irrenunciável196.
340. Este direito intransferível, que implica uma obrigação e que expressa a liberdade da família na esfera da educação por seu significado e alcance precisa ser decididamente garantido pelo Estado. Por esta razão, o poder público, a quem compete a proteção e a defesa das liberdades dos cidadãos, atendendo à justiça distributiva, deve distribuir as ajudas públicas – que provêm dos impostos de todos os cidadãos – de tal maneira que a totalidade dos pais, independente de sua condição social, possam escolher, segundo sua consciência, em meio a uma pluralidade de projetos educativos, as escolas adequadas para seus filhos. Esse é o valor fundamental e a natureza jurídica que fundamenta a subvenção escolar. Portanto, nenhum setor educacional, nem sequer o próprio Estado, tem o privilégio e a exclusividade de escolher a escola dos mais pobres, sem com isso infringir importantes direitos. Deste modo, respeitam-se direitos naturais da pessoa humana, da convivência pacífica dos cidadãos e do progresso de todos.
6.4.6.2 As universidades e centros superiores de educação católica
341. Segundo sua própria natureza, a Universidade Católica presta uma importante ajuda à Igreja em sua missão evangelizadora. Trata-se de um vital testemunho de ordem institucional de Cristo e de sua mensagem, tão necessários e importantes para as culturas impregnadas pelo secularismo. As atividades fundamentais de uma universidade católica deverão se vincular e se harmonizar com a missão evangelizadora da Igreja. Essa missão se realiza através de uma pesquisa realizada à luz da mensagem cristã, que coloque os novos descobrimentos humanos a serviço das pessoas e da sociedade. Dessa forma oferece uma formação dada em um contexto de fé, que prepara pessoas capazes de um juízo racional e crítico, conscientes da dignidade transcendental da pessoa humana. Isto implica uma formação profissional que compreende os valores éticos e a dimensão de serviço às pessoas e à sociedade; o diálogo com a cultura, que favoreçe uma melhor compreensão e transmissão da fé; e a pesquisa teológica que ajuda a fé a se expressar em linguagem significativa para estes tempos. Porque é cada vez mais consciente de sua missão salvífica neste mundo, a Igreja quer sentir estes centros pertos de si mesma e deseja tê-los presentes e operantes na difusão da mensagem autêntica de Cristo197.
342. As universidades católicas, por conseguinte, terão que desenvolver com fidelidade sua especificidade cristã, visto que possuem responsabilidades evangélicas que instituições de outro tipo não estão obrigadas a realizar. Entre elas, encontra-se, sobretudo, o diálogo fé e razão, fé e cultura e a formação de professores, alunos e pessoal administrativo através da Doutrina Social e Moral da Igreja, para que sejam capazes de compromisso solidário com a dignidade humana, de serem solidários com a comunidade e de mostrar profeticamente a novidade que representa o cristianismo na vida das sociedades latino-americanas e caribenhas. Para isso, é indispensável que se cuide do perfil humano, acadêmico e cristão dos que são os principais responsáveis pela pesquisa e docência.
343.É necessária uma pastoral universitária que acompanhe a vida e o caminhar de todos os membros da comunidade universitária, promovendo um encontro pessoal e comprometido com Jesus Cristo e múltiplas iniciativas solidárias e missionárias. Também deve-se procurar uma presença próxima e dialogante com membros de outras universidades públicas e centros de estudo.
344. Nas últimas décadas na América Latina e no Caribe observamos o surgimento de diversos Institutos de Teologia e Pastoral, orientados para a formação e atualização de agentes de pastoral. Neste caminho, tem-se conseguido criar espaços de diálogo, discussão e busca de respostas adequadas aos enormes desafios enfrentados pela evangelização no Continente. Ao mesmo tempo, tem sido possível formar inumeráveis líderes a serviço das Igrejas locais.
345. Convidamos a se valorizar a rica reflexão pós-conciliar da Igreja presente na América Latina e no Caribe, assim como a reflexão filosófica, teológica e pastoral de nossas Igrejas e de seus centros de formação e pesquisa, a fim de fortalecer nossa própria identidade, desenvolver a criatividade pastoral e potencializar o nosso. É necessário fomentar o estudo e a pesquisa teológica e pastoral frente aos desafios da nova realidade social, plural, diferenciada e globalizada, procurando novas respostas que dêem sustentação à fé e à experiência do discipulado dos agentes de pastoral. Sugerimos também uma maior utilização dos serviços que oferecem os institutos de formação teológica pastoral existentes, promovendo o diálogo entre os mesmos e destinar mais recursos e esforços conjuntos na formação de leigos e leigas.
346. Esta V Conferência agradece o inestimável serviço que diversas instituições de educação católica prestam na promoção humana e na evangelização das novas gerações, como sua contribuição à cultura de nossos povos e apoio às dioceses, congregações religiosas e organizações de leigos católicos que mantêm escolas, universidades, institutos de educação superior e de capacitação não formal, a prosseguirem incansavelmente em sua abnegada e insubstituível missão apostólica.
TERCEIRA PARTE
A VIDA DE JESUS CRISTO PARA NOSSOS POVOS
CAPÍTULO 7
A MISSÃO DOS DISCÍPULOS A SERVIÇO DA VIDA PLENA
347. “A Igreja peregrina é missionária por natureza, porque toma sua origem da missão do Filho e do Espírito Santo, segundo o desígnio do Pai”198. Por isso, o impulso missionário é fruto necessário à vida que a Trindade comunica aos discípulos.
7.1 Viver e comunicar a vida nova em Cristo a nossos povos
348. A grande novidade que a Igreja anuncia ao mundo é que Jesus Cristo, o Filho de Deus feito homem, a Palavra e a Vida, veio ao mundo para nos fazer “partícipes da natureza divina” (2 Pe 1,4), e para que participemos de sua própria vida. É a vida trinitária do Pai, do Filho e do Espírito Santo, a vida eterna. Sua missão é manifestar o imenso amor do Pai, que quer que sejamos seus filhos. O anúncio do kerygma convida a tomar consciência desse amor vivificador de Deus que nos é oferecido em Cristo morto e ressuscitado. Isto é o que primeiro necessitamos anunciar e também escutar, porque a graça tem um primado absoluto na vida cristã e na atividade evangelizadora da Igreja: “Pela graça de Deus sou o que sou” (1 Cor 15,10).
349. O chamado de Jesus no Espírito e o anúncio da Igreja apelam sempre à nossa acolhida, confiados pela fé. “Aquele que crê em mim tem a vida eterna”. O batismo não só purifica dos pecados. Faz renascer o batizado, conferindo-lhe vida nova em Cristo, que o incorpora à comunidade dos discípulos e missionários de Cristo, à Igreja, e o faz filho de Deus, permite reconhecer a Cristo como Primogênito e Cabeça de toda a humanidade. Sermos humanos implica vivermos fraternalmente e sempre atentos às necessidades dos mais fracos.
350. Nossos povos não querem andar pelas sombras da morte. Têm sede de vida e de felicidade em Cristo. Buscam-no como fonte de vida. Desejam essa vida nova em Deus, para a qual o discípulo do Senhor nasce pelo batismo e renasce pelo sacramento da reconciliação. Procuram essa vida que se fortalece, quando é confirmada pelo Espírito de Jesus e quando o discípulo renova sua aliança de amor em Cristo, com o Pai e com os irmãos, em cada celebração eucarística. Acolhendo a Palavra de vida eterna e alimentados pelo Pão descido do céu, quer viver a plenitude do amor e conduzir todos ao encontro com Aquele que é o Caminho, a Verdade e a Vida.
351. No entanto, no exercício de nossa liberdade, às vezes recusamos essa vida nova (cf. Jo 5,40) ou não perseveramos no caminho (cf. Hb 3,12-14). Com o pecado, optamos por um caminho de morte. Por isso, o anúncio de Jesus sempre convoca à conversão, que nos faz participar do triunfo do Ressuscitado e inicia um caminho de transformação.
352. Dos que vivem em Cristo se espera um testemunho muito crível de santidade e de compromisso. Desejando e procurando essa santidade não vivemos menos, mas melhor, porque, quando Deus pede mais, é porque está oferecendo muito mais: “Não tenham medo de Cristo! Ele não tira nada e nos dá tudo!”199.
7.1.1 Jesus a serviço da vida
353. Jesus, o Bom Pastor, quer nos comunicar a sua vida e se colocar a serviço da vida. Vemos como ele se aproxima do cego no caminho (cf. Mc 10,46-52), quando dignifica a samaritana (cf. Jo 4,7-26), quando cura os enfermos (cf. Mt 11,2-6), quando alimenta o povo faminto (cf. Mc 6,30-44), quando liberta os endemoninhados (cf. Mc 5,1-20). Em seu Reino de vida Jesus inclui a todos: come e bebe com os pecadores (cf. Mc 2,16), sem se importar que o tratem como comilão e bêbado (cf. Mt 11,19); toca leprosos (cf. Lc 5,13), deixa que uma prostituta unja seus pés (cf. Lc 7,36-50) e, de noite, recebe Nicodemos para convida-lo a nascer de novo (cf. Jo 3,1-15). Igualmente, convida a seus discípulos à reconciliação (cf. Mt 5,24), ao amor pelos inimigos (cf. Mt 5,44) e a optarem pelos mais pobres (cf. Lc 14,15-24).
354. Em sua palavra e em todos os sacramentos Jesus nos oferece um alimento para o caminho. A Eucaristia é o centro vital do universo, capaz de saciar a fome de vida e de felicidade: “Aquele que come de mim, viverá” (Jo 6,57). Nesse banquete feliz participamos da vida eterna e, assim, nossa existência cotidiana se converte em uma Missa prolongada. Mas todos os dons de Deus requerem uma disposição adequada para que possam produzir frutos de mudança. Especialmente, nos exigem um espírito comunitário, que abramos os olhos para reconhecê-lo e servi-lo nos mais pobres: “No mais humilde encontramos o próprio Jesus”200. Por isso, São João Crisóstomo exortava: “Querem em verdade honrar o corpo de Cristo? Não consintam que esteja nu. Não o honrem no templo com mantos de seda enquanto fora o deixam passar frio e nudez”201.
7.1.2 Várias dimensões da vida em Cristo
369. Jesus Cristo é a plenitude que eleva a condição humana à condição divina para sua glória: “Eu vim para dar vida aos homens e para que a tenham em abundância” (Jo 10,10). Sua amizade não nos exige que renunciemos a nossos desejos de plenitude vital, porque Ele ama nossa felicidade também nesta terra. Diz o Senhor que Ele criou tudo “para que o desfrutemos” (1 Tm 6,17).
356. A vida nova de Jesus Cristo atinge o ser humano por inteiro e desenvolve em plenitude a existência humana “em sua dimensão pessoal, familiar, social e cultural”202. Para isso, faz falta entrar em um processo de mudança que transfigure os vários aspectos da própria vida. Só assim será possível perceber que Jesus Cristo é nosso salvador em todos os sentidos da palavra. Só assim manifestaremos que a vida em Cristo cura, fortalece e humaniza. Porque “Ele é o Vivente, que caminha a nossa lado, manifestando-nos o sentido dos acontecimentos, da dor e da morte, da alegria e da festa”203. A vida em Cristo inclui a alegria de comer juntos, o entusiasmo por progredir, a paixão por trabalhar e por aprender, a alegria de servir a quem necessite de nós, o contato com a natureza, o entusiasmo dos projetos comunitários, o prazer de uma sexualidade vivida segundo o Evangelho e todas as coisas com as quais o Pai nos presenteia como sinais de seu amor sincero. Podemos encontrar o Senhor em meio às alegrias de nossa limitada existência e, dessa forma, brota uma gratidão sincera.
357. Mas o consumismo hedonista e individualista, que coloca a vida humana em função de um prazer imediato e sem limites, obscurece o sentido da vida e a degrada. A vitalidade que Cristo oferece nos convida a ampliar nossos horizontes e a reconhecer que abraçando a cruz cotidiana entramos nas dimensões mais profundas da existência. O Senhor que nos convida a valorizar as coisas e a progredir, também nos previne sobre a obsessão por acumular: Não amontoem tesouros nesta terra” (Mt 6,19). “de que serve ao homem ganhar o mundo, mas perder a sua vida?” (Mt 16,26). Jesus Cristo nos oferece muito, inclusive muito mais do que esperamos. À Samaritana, ele dá mais do que a água do poço. À multidão faminta ele oferece mais do que o alívio da fome. Entrega-se a si mesmo como a vida em abundância. A vida nova em Cristo é participação na vida de amor do Deus Uno e Trino. Começa no batismo e chega a sua plenitude na ressurreição final.
7.1.3 A serviço de uma vida plena para todos
358. Mas as condições de vida de muitos abandonados, excluídos e ignorados em sua miséria e sua dor, contradizem este projeto do Pai e desafiam os cristãos a um maior compromisso a favor da cultura da vida. O Reino de vida que Cristo veio trazer é incompatível com essas situações desumanas. Se pretendemos fechar os olhos diante destas realidades, não somos defensores da vida do Reino e nos situamos no caminho da morte: “Nós sabemos que passamos da morte para a vida porque amamos os irmãos. Aquele que não ama, permanece na morte” (1 Jo 3,14). É necessário sublinhar “a inseparável relação entre o amor a Deus e o amor ao próximo”204, que “convida a todos a suprimir as graves dificuldades sociais e as enormes diferenças no acesso aos bens”205. Tanto a preocupação por desenvolver estruturas mais justas como por transmitir os valores sociais do Evangelho situam-se neste contexto de serviço fraterno à vida digna.
359. Descobrimos, dessa forma, uma lei profunda da realidade: a vida só se desenvolve plenamente na comunhão fraterna e justa. Porque “Deus, em Cristo, não redime só a pessoa individual, mas também as relações sociais entres os seres humanos”206. Diante de diversas situações que manifestam a ruptura entre irmãos, compele-nos que a fé católica de nossos povos latino-americanos e caribenhos se manifeste em uma vida mais digna para todos. O rico magistério social da Igreja nos indica que não podemos conceber uma oferta de vida em Cristo sem um dinamismo de libertação integral, de humanização, de reconciliação e de inserção social.
7.1.4 Uma missão para comunicar vida
360. A vida se acrescenta dando-a e se enfraquece no isolamento e na comodidade. De fato, os que mais desfrutam da vida são os que deixam a segurança da margem e se apaixonam na missão de comunicar vida aos demais. O Evangelho nos ajuda a descobrir que um cuidado enfermo da própria vida depõe contra a qualidade humana e cristã dessa mesma vida. Vive-se muito melhor quando temos liberdade interior para dá-la a todos: “Quem aprecia sua vida terrena, a perderá” (Jo 12,25). Aqui descobrimos outra lei profunda da realidade: “ que a vida se alcança e amadurece à medida que se a entrega para dar vida aos outros. Isso é, definitivamente, a missão.
361. O projeto de Jesus é instaurar o Reino de seu Pai. Por isso, pede a seus discípulos: “Proclamem que está chegando o Reino dos céus!” (Mt 10,7). Trata-se do Reino da vida. Porque a proposta de Jesus Cristo a nossos povos, o conteúdo fundamental desta missão, é a oferta de uma vida plena para todos. Por isso, a doutrina, as normas, as orientações éticas e toda a atividade missionária das Igrejas, deve deixar transparecer esta atrativa oferta de uma vida mais digna, em Cristo, para cada homem e para cada mulher da América Latina e do Caribe.
362. Assumimos o compromisso de uma grande missão em todo o Continente, que nos exigirá aprofundar e enriquecer todas as razões e motivações que permitam converter a cada cristão em um discípulo missionário. Necessitamos desenvolver a dimensão missionária da vida de Cristo. A Igreja necessita de uma forte comoção que a impeça de se instalar na comodidade, no estancamento e na indiferença, à margem do sofrimento dos pobres do Continente. Necessitamos que cada comunidade cristã se transforme num poderoso centro de irradiação da vida em Cristo. Esperamos um novo Pentecostes que nos livre do cansaço, da desilusão, da acomodação ao ambiente; esperamos uma vinda do Espírito que renove nossa alegria e nossa esperança. Por isso, é imperioso assegurar calorosos espaços de oração comunitária que alimentem o fogo de um ardor incontido e tornem possível um atrativo testemunho de unidade “para que o mundo creia” (Jo 17,21).
363. A força deste anúncio de vida será fecundo se o fazemos da forma adequada, com as atitudes do Mestre, tendo sempre a Eucaristia como fonte e alvo de toda atividade missionária. Invocamos o Espírito Santo para poder dar um testemunho de proximidade que entranha proximidade afetuosa, escuta, humildade, solidariedade, compaixão, diálogo, reconciliação, compromisso com a justiça social e capacidade de compartilhar, como Jesus fez. Ele continua convocando, continua oferecendo incessantemente uma vida digna e plena para todos. Nós somos agora, na América Latina e no Caribe, seus discípulos e discípulas, chamados a navegar mar adentro para uma pesca abundante. Trata-se de sair de nossa consciência isolada e de nos lançarmos com ousadia e confiança à missão de toda a Igreja.
364. Detemos o olhar em Maria e reconhecemos nela uma imagem perfeita da discípula missionária. Ela nos exorta a fazer o que Jesus nos diz (cf. Jo 2,5) para que Ele possa derramar sua vida na América Latina e no Caribe. Junto com ela queremos estar atentos uma vez mais à escuta do Mestre, e ao redor dela, voltarmos a receber com estremecimento ao mandado missionário de seu filho: “Vão e façam, discípulos de todos os povos” (Mt 28,19). Escutamos Jesus como comunidade de discípulos missionários que experimentaram o encontro vivo com Ele e queremos compartilhar com os demais essa alegria incomparável todos os dias.
7.2 Conversão pastoral e renovação missionária das comunidades
365. Esta firme decisão missionária deve impregnar todas as estruturas eclesiais e todos os planos pastorais de dioceses, paróquias, comunidades religiosas, movimentos e de qualquer instituição da Igreja. Nenhuma comunidade deve se isentar de entrar decididamente, com todas suas forças, nos processos constantes de renovação missionária e de abandonar as ultrapassadas estruturas que já não favoreçam a transmissão da fé.
366. A conversão pessoal desperta a capacidade de submeter tudo a serviço da instauração do reino da vida. Os bispos, presbíteros, diáconos permanentes, consagrados e consagradas, leigos e leigas, são chamados a assumir uma atitude de permanente conversão pastoral, que envolve escutar com atenção e discernir “o que o Espírito está dizendo às Igrejas” (Ap 2,29) através dos sinais dos tempos nos quais Deus se manifesta.
367. A pastoral da Igreja não pode prescindir do contexto histórico onde vivem seus membros. Sua vida acontece em contextos sócio-culturais bem concretos. Estas transformações sociais e culturais representam naturalmente novos desafios para a Igreja em sua missão de construir o Reino de Deus. Em fidelidade ao Espírito santo que a conduz, nasce dali a necessidade de uma renovação eclesial, que envolve reformas espirituais, pastorais e também institucionais.
368. A conversão dos pastores nos leva também a viver e promover uma espiritualidade de comunhão e participação, “propondo-a como princípio educativo em todos os lugares onde se forma o homem e o cristão,, onde se educam os ministros do altar, as pessoas consagradas e os agentes pastorais, onde se constroem as famílias e as comunidades”207. A conversão pastoral requer que as comunidades eclesiais sejam comunidades de discípulos missionários ao redor de Jesus Cristo, Mestre e Pastor. Dali nasce a atitude de abertura, de diálogo e de disponibilidade para promover a co-responsabilidade e participação efetiva de todos os fiéis na vida das comunidades cristãs. Hoje, mais do que nunca, o testemunho de comunhão eclesial e de santidade são uma urgência pastoral. A programação pastoral há de se inspirar no mandamento novo do amor (cf Jo 13,35)208.
369. Encontramos o modelo paradigmático desta renovação comunitária nas primitivas comunidades cristãs (cf. At 2,42-47), que souberam buscar novas formas para evangelizar de acordo com as culturas e as circunstâncias. Ao mesmo tempo, motiva-nos a eclesiologia de comunhão do Concílio Vaticano II, o caminho sinodal no pós-concílio e as Conferências Gerais anteriores do Episcopado Latino-americano e do Caribe. Não esqueçamos que como nos assegura Jesus, “onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estarei no meio deles” (Mt 18,20).
370. A conversão pastoral de nossas comunidades exige que se vá além de uma pastoral de mera conservação para uma pastoral decididamente missionária. Assim, será possível que “o único programa do Evangelho siga introduzindo-se na história de cada comunidade eclesial”209 com novo ardor missionário, fazendo com que a Igreja se manifeste como uma mãe que nos sai ao encontro, uma casa acolhedora, uma escola permanente de comunhão missionária.
371. O projeto pastoral da Diocese, caminho de pastoral orgânica, deve ser uma resposta consciente e eficaz para atender as exigências do mundo de hoje com “indicações programáticas concretas, objetivos e métodos de trabalho, de formação e valorização dos agentes e da procura dos meios necessários que permitam que o anúncio de Cristo chegue às pessoas, modele as comunidades e incida profundamente na sociedade e na cultura mediante o testemunho dos valores evangélicos”210. Os leigos devem participar do discernimento, da tomada de decisões, do planejamento e da execução211. Este projeto diocesano exige um acompanhamento constante por parte do bispo, dos sacerdotes e dos agentes pastorais, com uma atitude flexível que lhes permita se manter atentos às exigências da realidade sempre mutável.
372. Levando em consideração as dimensões de nossas paróquias é aconselhável a setorização em unidades territoriais menores, com equipes próprias de animação e de coordenação que permitam uma maior proximidade com as pessoas e grupos que vivem na região. É recomendável que os agentes missionários promovam a criação de comunidades de famílias que fomentem a colocação em comum de sua fé cristã e das respostas aos problemas. Reconhecemos como um fenômeno importante de nosso tempo o aparecimento e difusão de diversas formas de voluntariado missionário que se ocupam de uma pluralidade de serviços. A Igreja apóia as redes e programas de voluntariado nacional e internacional que surgiram em muitos países, na esfera das organizações da sociedade civil, para o bem dos mais pobres de nosso continente, à luz dos princípios de dignidade, subsidiariedade e solidariedade, em conformidade com a Doutrina Social da Igreja. Não se trata só de estratégias para procurar êxitos pastorais, mas da fidelidade na imitação do Mestre, sempre próximo, acessível, disponível a todos, desejoso de comunicar vida em cada região da terra.
7.3. Nosso compromisso com a missão ad gentes
373. Conscientes e agradecidos porque o Pai amou tanto ao mundo que enviou seu Filho para salva-lo (cf. Jo 3,16), queremos ser continuadores de sua missão, visto que esta é a razão de ser da Igreja e que define sua identidade mais profunda.
374. Como discípulos missionários, queremos que a influência de Cristo chegue até aos confins da terra. Descobrimos a presença do Espírito Santo em terras de missão mediante sinais:
1) A presença dos valores do Reino de Deus nas culturas, recriando-as a partir de dentro para transformar as situações anti-evangélicas.
2) Os esforços de homens e mulheres que encontram em suas crenças religiosas o impulso para seu compromisso histórico.
3) O nascimento da comunidade eclesial.
4) O testemunho de pessoas e comunidades que anunciam Jesus Cristo com a santidade de suas vidas.
375. Sua Santidade Bento XVI confirmou que a missão ad gentes se abre a novas dimensões: “O campo da Missão ad gentes tem se ampliado notavelmente e não se pode defini-lo baseando-se só em considerações geográficas ou jurídicas. Na verdade, os verdadeiros destinatários da atividade missionária do povo de Deus não são só os povos não cristãos e das terras distantes, mas também nos campos sócio-culturais e, sobretudo, os corações”212.
376. Ao mesmo tempo, o mundo espera de nossa Igreja latino-americana e caribenha um compromisso mais significativo com a missão universal em todos os Continentes. Para não cair na armadilha de nos fechar em nós mesmos, devemos nos formar como discípulos missionários sem fronteiras, dispostos a ir “á outra margem”, àquela na qual Cristo não é ainda reconhecido como Deus e Senhor, e a Igreja não está presente213.
377. Os discípulos, que por essência são também missionários em virtude do Batismo e da Confirmação, são formados com um coração universal, aberto a todas as culturas e a todas as verdades, cultivando a capacidade de contato humano e de diálogo. Estamos dispostos com a coragem que nos dá o Espírito, a anunciar a Cristo onde não é aceito, com nossa vida, com nossa ação, com nossa profissão de fé e com sua Palavra. Os emigrantes são igualmente discípulos e missionários, e são chamados a ser uma nova semente de evangelização, a exemplo de tantos emigrantes e missionários que trouxeram a fé cristã a nossa América.
378. Queremos estimular as Igrejas locais para que apóiem e organizem os centros missionários nacionais e atuem em estreita colaboração com as Obras Missionais Pontifícias e outras instâncias eclesiais cooperantes, cuja importância e dinamismo para a animação e a cooperação missionária reconhecemos e agradecemos de coração. Por ocasião dos cinqüenta anos da encíclica Fidei Donum, agradecemos a Deus pelos missionárias e missionárias que vieram ao Continente e aqueles que hoje estão presentes nele, dando testemunho do espírito missionário de suas Igrejas locais ao serem enviados por elas.
379. Nosso desejo é que esta V Conferência seja um estímulo para que muitos discípulos de nossas Igrejas vão e evangelizem na “outra margem”. A fé se fortalece quando é transmitida e é preciso que entremos em nosso continente em uma nova primavera da missão ad gentes. Somos Igrejas pobres, mas “devemos dar a partir de nossa pobreza e a partir da alegria de nossa fé”214 e isto sem colocar sobre alguns poucos enviados o compromisso que é de toda a comunidade cristã. Nossa capacidade de compartilhar nossos dons espirituais, humanos e materiais com outras Igrejas, confirmará a autenticidade de nossa nova abertura missionária. Por isso, estimulamos a participação na celebração dos congressos missionários.
CAPÍTULO 8
O REINO DE DEUS E A PROMOÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA
380. A missão do anúncio da Boa Nova de Jesus Cristo tem uma destinação universal. Seu mandado de caridade alcança todas as dimensões da existência, todas as pessoas, todos os ambientes da convivência e todos os povos. Nada do humano pode lhe parecer estranho. A Igreja sabe, por revelação de Deus e pela experiência humana da fé, que Jesus Cristo é a resposta total, superabundante e satisfatória às perguntas humanas sobre a verdade, o sentido da vida e da realidade, a felicidade, a justiça e a beleza. São as inquietudes que estão arraigadas no coração de toda pessoa e que pulsam no mais profundo da cultura dos povos. Por isso, todo sinal autêntico de verdade, bem e beleza na aventura humana vem de Deus e clama por Deus.
381.Procurando aproximar da vida de Jesus Cristo como resposta aos desejos de nossos povos, destacamos a seguir alguns grandes campos de atividade, prioridades e tarefas para a missão dos discípulos de Jesus Cristo no hoje da América Latina e do Caribe.
8. 1 Reino de Deus, justiça social e caridade cristã
382. “O prazo se cumpriu. O Reino de Deus está chegando. Convertam-se e creiam no Evangelho” (Mc 1,15). A voz do Senhor continua nos chamando como discípulos missionários e nos desafia a orientar toda nossa vida a partir da realidade transformadora do Reino de Deus que se faz presente em Jesus. Acolhemos com muita alegria esta boa nova. Deus amor é Pai de todos os homens e mulheres de todos os povos e raças. Jesus Cristo é o Reino de Deus que procura demonstrar toda sua força transformadora em nossa Igreja e em nossas sociedades. N'Ele, Deus tem nos escolhido para que sejamos seus filhos com a mesma origem e destino, com a mesma dignidade, com os mesmos direitos e deveres vividos no mandamento supremo do amor. O Espírito colocou este germe do Reino em nosso Batismo e o faz crescer pela graça da conversão permanente graças à Palavra de Deus e aos sacramentos.
383. Sinais evidentes da presença de Deus são: a experiência pessoal e comunitária das bem-aventuranças, a evangelização dos pobres, o conhecimento e cumprimento da vontade do Pai, o martírio pela fé, o acesso de todos aos bens da criação, o perdão mútuo, sincero e fraterno, aceitando e respeitando a riqueza da pluralidade e a luta para não sucumbir à tentação e não ser escravos do mal.
384. O fato de ser discípulos e missionários de Jesus Cristo para que nossos povos, n'Ele, tenham vida leva-nos a assumir evangelicamente e a partir da perspectiva do Reino as tarefas prioritárias que contribuem para a dignificação do ser humano e a trabalhar junto com os demais cidadãos e instituições para o bem do ser humano. O amor de misericórdia para com todos os que vêem vulnerada sua vida em qualquer de suas dimensões, como bem nos mostra o Senhor em todos seus gestos de misericórdia, requer que socorramos as necessidades urgentes, ao mesmo tempo que colaboremos com outros organismos ou instituições para organizar estruturas mais justas nos âmbitos nacionais e internacionais. É urgente criar estruturas que consolidem uma ordem social, econômica e política na qual não haja iniquidade e onde haja possibilidade para todos. Igualmente, requerem-se novas estruturas que promovam uma autêntica convivência humana, que impeçam a prepotência de alguns e que facilitem o diálogo construtivo para os necessários consensos sociais.
385. A misericórdia sempre será necessária, mas não deve contribuir para criar círculos viciosos que sejam funcionais a um sistema econômico iníquo. Requer-se que as obras de misericórdia estejam acompanhadas pela busca de uma verdadeira justiça social, que vá elevando o nível de vida dos cidadãos, promovendo-os como sujeitos de seu próprio desenvolvimento. Em sua Encíclica Deus Caritas est, o Papa Bento XVI tratou com clareza inspiradora a complexa relação entre justiça e caridade. Ali, disse-nos que “a ordem justa da sociedade e do Estado é uma tarefa principal da política” e não da Igreja. Mas a Igreja “não pode nem deve colocar-se à margem na luta pela justiça”215. Ela colabora purificando a razão de todos aqueles elementos que ofuscam e impedem a realização de uma libertação integral. Também é tarefa da Igreja ajudar com a pregação, a catequese, a denúncia e o testemunho do amor e da justiça, para que despertem na sociedade as forças espirituais necessárias e se desenvolvam os valores sociais. Só assim as estruturas serão realmente mais justas, poderão ser mais eficazes e sustentar-se no tempo. Sem valores não há futuro e não haverá estruturas salvadoras, visto que nelas sempre subjaz a fragilidade humana.
386. A Igreja tem como missão própria e específica comunicar a vida de Jesus Cristo a todas as pessoas, anunciando a Palavra, administrando os sacramentos e praticando a caridade. É oportuno recordar que o amor se mostra nas obras mais do que nas palavras, e isto vale também para nossas palavras nesta V Conferência. Nem todo o que diz Senhor, Senhor... (cf. Mt 7,21). Os discípulos missionários de Jesus Cristo tem a tarefa prioritária de dar testemunho do amor de Deus e ao próximo com obras concretas. Dizia São Alberto Hurtado: “Em nossas obras, nosso povo sabe que compreendemos sua dor”.
8.2 A dignidade humana
387. A cultura atual tende a propor estilos de ser e de viver contrários à natureza e a dignidade do ser humano. O impacto dominante dos ídolos do poder, da riqueza e do prazer efêmero tem se transformado, acima do valor da pessoa, na norma máxima de funcionamento e no critério decisivo na organização social. Diante desta realidade, anunciamos, uma vez mais, o valor supremo de cada homem e de cada mulher. Na verdade, o Criador, ao colocar tudo o que foi criado a serviço do ser humano, manifesta a dignidade da pessoa humana e convida a respeitá-la (cf. Gn 1,26-30).
388. Proclamamos que todo ser humano existe pura e simplesmente pelo amor de Deus que o criou e pelo amor de Deus que o conserva em cada instante. A criação do homem e da mulher a sua imagem e semelhança é um acontecimento divino de vida, e sua fonte é o amor fiel do Senhor. Por conseguinte, só o Senhor é o autor e o dono da vida, e o ser humano, sua imagem vivente, é sempre consagrado, desde sua concepção, em todas as etapas da existência, até sua morte natural e depois da morte. O olhar cristão sobre o ser humano permite perceber seu valor que transcende todo o universo: “Deus nos mostrou de modo insuperável como ama cada homem, e com isso confere a ele uma dignidade infinita”216.
389. Nossa missão, para que nossos povos tenham vida n'Ele, manifesta nossa convicção de que o sentido, a fecundidade e a dignidade da vida humana se encontra no Deus vivo revelado em Jesus. É urgente a tarefa de entregar a nossos povos a vida plena e feliz que Jesus nos traz, para que cada pessoa humana viva de acordo com a dignidade que Deus lhe deu. Fazemos isso com a consciência de que essa dignidade alcançará sua plenitude quando Deus for tudo em todos. Ele é o Senhor da vida e da história, vencedor do mistério do mal e acontecimento salvífico que nos faz capazes de emitir um juízo verdadeiro sobre a realidade, que salvaguarde a dignidade das pessoas e dos povos.
390. Nossa fidelidade ao Evangelho, exige que proclamemos a verdade sobre o ser humano e sobre a dignidade de toda pessoa humana em todos os espaços públicos e privados do mundo de hoje e a partir de todas as instâncias da vida e da missão da Igreja.
8.3 A opção preferencial pelos pobres e excluídos
391. Dentro desta ampla preocupação pela dignidade humana, situa-se nossa angústia pelos milhões de latino-americanos e latino-americanas que não podem levar uma vida que responda a essa dignidade. A opção preferencial pelos pobres é uma das peculiaridades que marca a fisionomia da Igreja latino-americana e caribenha. De fato, João Paulo II, dirigindo-se a nosso continente, sustentou que “converter-se ao Evangelho para o povo cristão que vive na América, significa revisar todos os ambientes e dimensões de sua vida, especialmente tudo o que pertence a ordem social e á obtenção do bem comum”217.
392. Nossa fé proclama que “Jesus Cristo é o rosto humano de Deus e o rosto divino do homem”218. Por isso, “a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para nos enriquecer com sua pobreza”219. Esta opção nasce de nossa fé em Jesus Cristo, o Deus feito homem, que se fez nosso irmão (cf. Hb 2,11-12). Ela, no entanto, não é exclusiva, nem excludente.
393. Se esta opção está implícita na fé cristológica, os cristãos, como discípulos e missionários, são chamados a contemplar nos rostos sofredores de nossos irmãos, o rosto de Cristo que nos chama a servi-lo neles: “Os rostos sofredores dos pobres são rostos sofredores de Cristo”220. Eles desafiam o núcleo do trabalho da Igreja, da pastoral e de nossas atitudes cristãs. Tudo o que tenha relação com Cristo, tem relação com os pobres e tudo o que está relacionado com os pobres reivindica a Jesus Cristo: “Quando fizeram a um deste meus irmãos menores, fizeram a mim” (Mt 25,40). João Paulo II destacou que este texto bíblico “ilumina o mistério de Cristo”221. Porque em Cristo, o maior se fez menor, o forte se fez fraco, o rico se fez pobre.
394. De nossa fé em Cristo nasce também a solidariedade como atitude permanente de encontro, irmandade e serviço. Ela há de se manifestar em opções e gestos visíveis, principalmente na defesa da vida e dos direitos dos mais vulneráveis e excluídos, e no permanente acompanhamento em seus esforços por serem sujeitos de mudança e de transformação de sua situação. O serviço de caridade da Igreja entre os pobres “é um campo de atividade que caracteriza de maneira decisiva a vida cristã, o estilo eclesial e a programação pastoral”322.
395. O Santo Padre nos recorda que a Igreja está convocada a ser “advogada da justiça e defensora dos pobres”223 diante das “intoleráveis desigualdades sociais e econômicas”224, que “clamam ao céu”225. Temos muito que oferecer, visto que “não há dúvida de que a Doutrina Social da Igreja é capaz de despertar esperança em meio às situações mais difíceis, porque se não há esperança para os pobres, não haverá para ninguém, nem sequer para os chamados ricos”226. A opção preferencial pelos pobres exige que prestemos especial atenção àqueles profissionais católicos que são responsáveis pelas finanças das nações, naqueles que fomentam o emprego, nos políticos que devem criar as condições para o desenvolvimento econômico dos países, a fim de lhes dar orientações éticas coerentes com sua fé.
396. Comprometemo-nos a trabalhar para que a nossa Igreja Latino-americana e Caribenha continue sendo, com maior afinco, companheira de caminho de nossos irmãos mais pobres, inclusive até o martírio. Hoje queremos ratificar e potencializar a opção preferencial pelos pobres feita nas Conferências anteriores227. Que sendo preferencial implique que deva atravessar todas nossas estruturas e prioridades pastorais. A Igreja Latino-americana é chamada a ser sacramento de amor, de solidariedade e de justiça entre nossos povos.
397. Nesta época costuma acontecer de defendermos de forma demasiada nossos espaços de privacidade e lazer, e nos deixemos contagiar facilmente pelo consumismo individualista. Por isso, nossa opção pelos pobres corre o risco de ficar em um plano teórico ou meramente emotivo, sem verdadeira incidência em nossos comportamentos e em nossas decisões. É necessária uma atitude permanente que se manifeste em opções e gestos concretos228, e evite toda atitude paternalista. É solicitado que dediquemos tempo aos pobres, prestar a eles uma amável atenção, escutá-los com interesse, acompanhá-los nos momentos difíceis, escolhê-los para compartilhar horas, semanas ou anos de nossas vidas e, procurando, a partir deles, a transformação de sua situação. Não podemos esquecer que o próprio Jesus propôs isso com seu modo de agir e com suas palavras: “Quando deres um banquete, convida os pobres, os inválidos, os coxos e os cegos” (Lc 14,13).
398. Só a proximidade que nos faz amigos nos permite apreciar profundamente os valores dos pobres de hoje, seus legítimos desejos e seu modo próprio de viver a fé. A opção pelos pobres deve nos conduzir à amizade com os pobres. Dia a dia os pobres se fazem sujeitos da evangelização e da promoção humana integral: educam seus filhos na fé, vivem uma constante solidariedade entre parentes e vizinhos, procuram constantemente a Deus e dão vida ao peregrinar da Igreja. À luz do Evangelho reconhecemos sua imensa dignidade e seu valor sagrado aos olhos de Cristo, pobre como eles e excluído como eles. Desta experiência cristã compartilharemos com eles a defesa de seus direitos.
8.4 Uma renovada pastoral social para a promoção humana integral
399. Assumindo com nova força esta opção pelos pobres, manifestamos que todo processo evangelizador envolve a promoção humana e a autêntica libertação “sem a qual não é possível uma ordem justa na sociedade”229. Entendemos, além disso, que a verdadeira promoção humana não pode se reduzir a aspectos particulares: “Deve ser integral, isto é, promover a todos os homens e a todo homem”230, a partir da vida nova em Cristo que transforma a pessoa de tal maneira que “a faz sujeito de seu próprio desenvolvimento”231. Para a Igreja, o serviço da caridade, assim como o anúncio da Palavra e a celebração dos sacramentos, “é expressão irrenunciável da própria essência”232.
400. Portanto, a partir de nossa condição de discípulos e missionários, queremos estimular o Evangelho da vida e da solidariedade em nossos planos pastorais, à luz da Doutrina Social da Igreja. Além disso, promover caminhos eclesiais mais efetivos, com a preparação e compromisso dos leigos para intervir nos assuntos sociais. As palavras de João Paulo II nos enchem de esperança: “Ainda que imperfeito e provisório, nada do que se possa realizar mediante o esforço solidário de todos e a graça divina em um momento dado da história, para fazer mais humana a vida dos homens, terá sido perdido ou terá sido em vão”233
401. As Conferências Episcopais e as igrejas locais tem a missão de promover renovados esforços para fortalecer uma Pastoral Social estruturada, orgânica e integral que, com a assistência e a promoção humana234, faça-se presente nas novas realidades de exclusão e de marginalização em que vivem os grupos mais vulneráveis, onde a vida está mais ameaçada. No centro dessa ação está cada pessoa, que é acolhida e servida com cordialidade cristã. Nesta atividade a favor da vida de nossos povos, a Igreja católica apóia a colaboração mútua com outras comunidades cristãs.
402. A globalização faz emergir em nossos povos, novos rostos pobres. Com especial atenção e em continuidade com a Conferências Gerais anteriores, fixamos nosso olhar nos rostos dos novos excluídos: os migrantes, as vítimas da violência, os deslocados e refugiados, as vítimas do tráfico de pessoas e seqüestros, os desaparecidos, os enfermos de HIV e de enfermidades endêmicas, os toxico-dependentes, idosos, meninos e meninas que são vítimas da prostituição, pornografia e violência ou do trabalho infantil, mulheres maltratadas, vítimas da violência, da exclusão e do tráfico para a exploração sexual, pessoas com capacidades diferentes, grandes grupos de desempregados (as), os excluídos pelo analfabetismo tecnológico, as pessoas que vivem na rua das grandes cidades, os indígenas e afro-americanos, agricultores sem terra e os mineiros. A Igreja, com sua Pastoral Social, deve dar acolhida e acompanhar esta pessoas excluídas nas esferas a que correspondam.
403. Nesta tarefa e com criatividade pastoral, devem-se elaborar ações concretas que tenham incidência nos Estados para a aprovação de políticas sociais e econômicas que atendam as várias necessidades da população e que conduzam para um desenvolvimento sustentável. Com a ajuda de diferentes instâncias e organizações, a Igreja pode fazer uma permanente leitura cristã e uma aproximação pastoral à realidade de nosso continente, aproveitando o rico patrimônio da Doutrina Social da Igreja. Desta maneira, terá elementos concretos para exigir daqueles que têm a responsabilidade de elaborar e aprovar as políticas que afetam nossos povos, que o façam a partir de uma perspectiva ética, solidária e autenticamente humanista. Nesse aspecto os leigos e as leigas possuem um papel fundamental, assumindo tarefas pertinentes na sociedade.
404. Estimulamos os empresários que dirigem as grandes e médias empresas e aos microempresários, os agentes econômicos da gestão produtiva e comercial, tanto da ordem privada quanto comunitária, por serem criadores de riqueza em nossas nações, quando se esforçam em gerar emprego digno, em facilitar a democracia e em promover a aspiração a uma sociedade mais justa e a uma convivência cidadã com bem-estar e em paz. Igualmente estimulamos os que não investem seu capital em ação especulativas mas em criar fontes de trabalho, preocupando-se com os trabalhadores, considerando-os 'a eles e a suas famílias' a maior riqueza da empresa, que, como cristãos, vivem modestamente por terem feito da austeridade um valor inestimável, que colaboram com os governos na preocupação e conquista do bem comum e se forem pródigos em obras de solidariedade e de misericórdia.
405. Por fim, não podemos nos esquecer que a maior pobreza é a de não reconhecer a presença do mistério de Deus e de seu amor na vida do homem e seu amor, que é o único que verdadeiramente salva e liberta. Na verdade, “quem exclui a Deus de seu horizonte falsifica o conceito de realidade e, consequentemente,só pode terminar em caminhos equivocados e com receitas destrutivas235. A verdade desta afirmação parece evidente diante do fracasso de todos os sistemas que colocam Deus entre parêntesis.
8.5 Globalização da solidariedade e justiça internacional
406. A Igreja na América Latina e no Caribe sente que tem uma responsabilidade em formar cristãos e sensibilizá-los a respeito das grandes questões da justiça internacional. Por isso, tanto os pastores como os construtores da sociedade têm que estar atentos aos debates e normas internacionais sobre a matéria. Isto é especialmente importante para os leigos que assumem responsabilidades públicas, solidários com a vida dos povos. Por isso, propomos o seguinte:
a). Apoiar a participação da sociedade civil para a re-orientação e conseqüente reabilitação ética da política. Por isso, são muito importantes os espaços de participação da sociedade civil para a vigência da democracia, uma verdadeira economia solidária e um desenvolvimento integral, solidário e sustentável.
b). Formar na ética cristã que estabelece como desafio a conquista do bem comum a criação de oportunidades para todos, a luta contra a corrupção, a vigência dos direitos do trabalho e sindicais; é necessário colocar como prioridade a criação de oportunidades econômicas para setores da população tradicionalmente marginalizados, como as mulheres e os jovens, a partir do reconhecimento de sua dignidade. Por isso, é necessário trabalhar por uma cultura da responsabilidade em todo nível que envolva pessoas, empresas, governos e o próprio sistema internacional.
c). Trabalhar pelo bem comum global é promover uma justa regulação da economia, das finanças e do comércio mundial. É urgente prosseguir no desendividamento externo para favorecer os investimentos em desenvolvimento e gasto social236, prever regulações globais para prevenir e controlar os movimentos especulativos de capitais, para a promoção de um comércio justo e a diminuição das barreiras protecionistas dos poderosos, para assegurar preços adequados das matérias primas que os países empobrecidos produzem e de normas justas para atrair e regular os investimentos e serviços entre outros.
d). Examinar atentamente os Tratados inter-governamentais e outras negociações a respeito do livre comércio. A Igreja do país latino-americano envolvido, à luz de um balanço de todos os fatores que estão em jogo, precisa encontrar os caminhos mais eficazes para alertar os responsáveis políticos e a opinião pública a respeito das eventuais conseqüências negativas que podem afetar os setores mais desprotegidos e vulneráveis da população.
e). Chamar todos os homens e mulheres de boa vontade a colocarem em prática princípios fundamentais como o bem comum (a casa é de todos), a subsidiariedade, a solidariedade intergeracional e intrageracional.
8.6 Rostos sofredores que doem em nós
8.6.1 Pessoas que vivem na rua nas grandes cidades
407. Nas grandes cidades é cada vez maior o número das pessoas que vivem na rua. Requerem cuidado especial, atenção e trabalho de promoção humana por parte da Igreja, de tal modo que enquanto se-lhes proporciona ajuda no necessário para a vida, que também sejam incluídos em projetos de participação e promoção nos quais eles próprios sejam sujeitos de sua re-inserção social.
408. Queremos chamar a atenção dos governos locais e nacionais para que elaborem políticas que favoreçam a atenção a estes seres humanos, assim como atendam as causas que produzem este flagelo que afeta milhões de pessoas em toda nossa América Latina e no Caribe.
409. A opção preferencial pelos pobres nos impulsiona, como discípulos e missionários de Jesus, a procurar caminhos novos e criativos a fim de responder a outros efeitos da pobreza. A situação precária e a violência familiar com freqüência obrigam muitos meninos e meninas a procurarem recursos econômicos na rua para sua sobrevivência pessoal e familiar, expondo-se também a graves riscos morais e humanos.
410. É dever social do Estado criar uma política inclusiva das pessoas da rua. Nunca se aceitará como solução a esta grave problemática social a violência e inclusive o assassinato dos meninos e jovens da rua, como tem sucedido lamentavelmente em alguns países de nosso continente.
8.6.2 Migrantes
411. É expressão de caridade, também eclesial, o acompanhamento pastoral dos migrantes. Há milhões de pessoas que por diferentes motivos estão em constante mobilidade. Na América Latina e Caribe os emigrantes, deslocados e refugiados sobretudo por causas econômicas, políticas e de violência constituem um fato novo e dramático.
412. A Igreja, como Mãe, deve se sentir como Igreja sem fronteiras, Igreja familiar, atenta ao fenômeno crescente da mobilidade humana em seus diversos setores. Considera indispensável o desenvolvimento de uma mentalidade e uma espiritualidade a serviço pastoral dos irmãos em mobilidade, estabelecendo estruturas nacionais e diocesanas apropriadas, que facilitem o encontro do estrangeiro com a Igreja local de acolhida. As Conferências Episcopais e as Dioceses devem assumir profeticamente esta pastoral específica com a dinâmica de unir critérios e ações que favoreçam uma permanente atenção também aos migrantes, que devem chegar a ser também discípulos e missionários.
413. Para conseguir este objetivo, faz-se necessário reforçar o diálogo e a cooperação de saída e de acolhida entre as Igrejas, a fim de dar uma atenção comunitária e pastoral aos que estão em mobilidade, apoiando-os em sua religiosidade e valorizando suas expressões culturais em tudo aquilo que se refira ao Evangelho. É necessário, que nos Seminários e Casas de formação se tome consciência sobre a realidade da mobilidade humana, para dar a esse fenômeno uma resposta pastoral. Também se requer a preparação de leigos que com sentido cristão, profissionalismo e capacidade de compreensão, possam acompanhar aqueles que chegam, como também as famílias que deixam nos lugares de saída237. Cremos que “a realidade das migrações não deve nunca ser vista só como um problema, mas também e sobretudo, como um grande recurso para o caminho da humanidade”238.
414. Entre as tarefas da Igreja a favor dos migrantes está indubitavelmente a denúncia profética dos atropelos que sofrem frequentemente, como também o esforço por incidir, junto aos organismos da sociedade civil, nos governos dos países, para conseguir uma política migratória que leve em consideração os direitos das pessoas em mobilidade. Deve ter presente também os deslocados pela violência. Nos países açoitados pela violência se requer a ação pastoral para acompanhar as vítimas e oferecer-lhes acolhida e capacita-los para que possam viver de seu trabalho. Ao mesmo tempo, deverá aprofundar seu esforço pastoral e teológico para promover uma cidadania universal na qual não haja distinção de pessoas.
415. Os migrantes devem ser acompanhados pastoralmente por suas Igrejas de origem e estimulados a se fazer discípulos e missionários nas terras e comunidades que os acolhem, compartilhando com eles as riquezas de sua fé e de suas tradições religiosas. Os migrantes que partem de nossas comunidades podem oferecer uma valiosa contribuição missionária às comunidades que os acolhem.
416. As generosas remessas enviadas pelos imigrantes latino-americanos a partir dos Estados Unidos, Canadá, países europeus e outros, evidencia sua capacidade de sacrifício e amor solidário a favor das próprias famílias e pátrias de origem. É, geralmente, ajuda dos pobres para os pobres.
8.6.3 Enfermos
417. A Igreja tem feito uma opção pela vida. Esta nos projeta necessariamente para as periferias mais profundas da existência: o nascer e o morrer, a criança e o idoso, o são e o enfermo. São Irineu nos diz que “a glória de Deus é o homem vivo”, inclusive o fraco, o recém-nascido, o envelhecido pelos anos e o enfermo. Cristo enviou seus apóstolos a pregar o Reino de Deus e a curar os enfermos, verdadeiras catedrais do encontro com o Senhor Jesus.
418. Desde o início da evangelização este duplo mandado tem sido cumprido. O combate à enfermidade tem como finalidade conseguir a harmonia física, psíquica, social e espiritual para o cumprimento da missão recebida. A Pastoral da Saúde é a resposta às grandes interrogações da vida, como são o sofrimento e a morte, à luz da morte e da ressurreição do Senhor.
419. A saúde é um tema que move grandes interesses no mundo, mas não proporcionam uma finalidade que a transcenda. Na cultura atual a morte não cabe e, diante de sua realidade, trata-se de oculta-la. Abrindo a sua dimensão espiritual e transcendente, a Pastoral da Saúde se transforma no anúncio da morte e ressurreição do Senhor, única e verdadeira saúde. Ela unifica na economia sacramental de Cristo o amor de muitos “bons samaritanos”, presbíteros, diáconos, religiosas, leigos e profissionais da saúde. As 32.116 instituições católicas dedicadas à Pastoral da Saúde na América Latina representam um recurso para a evangelização que se deve aproveitar.
420. A maternidade da Igreja se manifesta nas visitas aos enfermos nos centros de saúde, na companhia silenciosa ao enfermo, no carinhoso trato, na delicada atenção às necessidades da enfermidade, através dos profissionais e voluntários discípulos do Senhor. Ela abriga com sua ternura, fortalece o coração e, no caso do moribundo, acompanha-o no trânsito definitivo. O enfermo recebe com amor a Palavra, o perdão, o Sacramento da Unção e os gestos de caridade dos irmãos. O sofrimento humano é uma experiência especial da cruz e da ressurreição do Senhor.
421. Deve-se, portanto, estimular nas Igrejas locais a Pastoral da Saúde que inclua diferentes campos de atenção. Consideramos de grande prioridade fomentar uma pastoral com pessoas que vivem com o HIV - Aids, em seu amplo contexto e em seus significados pastorais: que promova o acompanhamento compreensivo, misericordioso e a defesa dos direitos das pessoas infectadas; que implemente a informação, promova a educação e a prevenção, com critérios éticos, principalmente entre as novas gerações para que desperte a consciência de todos para conter a pandemia. A partir desta V Conferência pedimos aos governos o acesso gratuito e universal aos medicamentos para a Aids e a doses oportunas.
8.6.4 Dependentes de drogas
422. O problema da droga é como uma mancha de óleo que invade tudo. Não reconhece fronteiras, nem geográficas, nem humanas. Ataca igualmente a países ricos quanto pobres, a crianças, jovens, adultos e idosos, a homens e mulheres. A Igreja não pode permanecer indiferente diante deste flagelo que está destruindo a humanidade, especialmente as novas gerações. Sua tarefa deve ser direcionada em três direções: prevenção, acompanhamento e apoio das políticas governamentais para reprimir esta pandemia. Na prevenção, insiste na educação nos valores que devem conduzir às novas gerações, especialmente o valor da vida e do amor, a própria responsabilidade e a dignidade dos filhos de Deus. No acompanhamento, a Igreja está ao lado do dependente para ajudá-lo a recuperar sua dignidade e vencer esta enfermidade. No apoio à erradicação da droga, não deixa de denunciar a criminalidade sem nome dos narco-traficantes que comercializam com tantas vidas humanas, tendo como objetivo o lucro e a força em suas mais baixas expressões.
423. Na América Latina e no Caribe, a Igreja deve promover uma luta frontal contra o consumo e tráfico de drogas, insistindo no valor da ação preventiva e reeducativa, assim como apoiando os governos e entidades civis que trabalham neste sentido, exortando o estado em sua responsabilidade de combater o narcotráfico e prevenir o uso de todo tipo de droga. A ciência tem indicado a religiosidade como um fator de proteção e recuperação importante para o usuário de drogas.
424. Denunciamos que a comercialização da droga se tornou algo cotidiano em alguns de nossos países devido aos enormes interesses econômicos ao redor dela. Conseqüência disso é o grande número de pessoas, em sua maioria crianças e jovens, que agora se encontram escravizados e vivendo em situações muito precárias, que recorrem a droga para acalmar sua fome ou para escapar da cruel e desesperadora realidade em que vivem239.
425. É responsabilidade do Estado combater com firmeza e com base legal, a comercialização indiscriminada da droga e o consumo ilegal da mesma. Lamentavelmente, a corrupção também se faz presente nesta esfera, e aqueles que deveriam estar na defesa de uma vida mais digna, às vezes fazem uso ilegítimo de suas funções para se beneficiar economicamente.
426. Estimulamos todos os esforços que se realizam a partir do Estado, da sociedade civil e das Igrejas em acompanhar estas pessoas. A Igreja Católica tem muitas obras que respondem a esta problemática a partir do nosso ser discípulos e missionários de Jesus, ainda que não de maneira suficiente diante da magnitude do problema; são experiências que reconciliam os dependentes com a terra, com o trabalho, com a família e com Deus. Merecem especial atenção, neste sentido, as Comunidades terapêuticas, por sua visão humanística e transcendente da pessoa.
8.6.5 Detido em prisões
427. Uma realidade que golpeia a todos os setores da população, mas principalmente o mais pobre, é a violência produto das injustiças e outros males que durante longos anos está sendo semeado nas comunidades. Isto induz a uma maior criminalidade e, por fim, a que sejam muitas as pessoas que tem que cumprir penas em recintos penitenciários desumanos, caracterizados pelo comércio de armas, drogas, aglomeração, torturas, ausência de programas de reabilitação, crime organizado que impede um processo de reeducação e de inserção na vida produtiva da sociedade. No momento atual, os cárceres são com freqüência, lamentavelmente, escolas para aprender a delinqüir.
428. É necessário que os Estados considerem com seriedade e verdade a situação do sistema de justiça e a realidade carcerária. É necessário uma maior agilidade nos procedimentos judiciais, uma atenção personalizada da pessoa civil e militar que, em condições muito difíceis, trabalha nos recintos penitenciários, e o reforço da formação ética e dos valores correspondentes.
429. A Igreja agradece aos capelães e voluntários que, com grande entrega pastoral, trabalham nos recintos carcerários. Contudo, deve-se fortalecer a pastoral penitenciária, onde se incluam a tarefa evangelizadora e de promoção humana por parte dos capelães e do voluntariado carcerário. Tem prioridade as equipes de Direitos Humanos que garantem o devido processo aos privados de liberdade e uma atenção muito próxima à família dos presos.
430. Recomenda-se às Conferências Episcopais e Dioceses fomentar as comissões de pastoral penitenciária, que sensibilizem a sociedade sobre a grave problemática carcerária, estimulem processos de reconciliação dentro do recinto penitenciário e incidam nas políticas locais e nacionais no que se refere à segurança cidadã e à problemática penitenciária.
CAPÍTULO 9
FAMÍLIA, PESSOAS E VIDA
431. Não podemos nos deter aqui para analisar todas as questões que integram a atividade pastoral da Igreja, nem podemos propor projetos acabados ou linhas de ação exaustivas. Só nos deteremos a fim de mencionar algumas questões que alcançaram particular relevância nos últimos tempos, para que, posteriormente, as Conferências Episcopais e outros organismos locais avancem em considerações mais amplas, concretas e adaptadas às necessidades do próprio território.
9.1 O matrimônio e a família
432. A família é um dos tesouros mais importantes dos povos latino-americanos e caribenhos e é patrimônio da humanidade inteira. Em nossos países, uma parte importante da população está afetada por difíceis condições de vida que ameaçam diretamente a instituição familiar. Em nossa condição de discípulos e missionários de Jesus Cristo somos chamados a trabalhar para que esta situação seja transformada e a família assuma seu ser e sua missão240 no âmbito da sociedade e da Igreja241.
433. A família cristã está fundada no sacramento do matrimônio entre um homem e uma mulher, sinal do amor de Deus pela humanidade e da entrega de Cristo por sua esposa, a Igreja. A partir desta aliança se manifestam a paternidade e a maternidade, a filiação e a fraternidade e o compromisso dos dois por uma sociedade melhor.
434. Cremos que “a família é imagem de Deus que, em seu mistério mais íntimo não é uma solidão, mas uma família”242. Na comunhão de amor das três Pessoas divinas, nossas famílias tem sua origem, seu modelo perfeito, sua motivação mais bela e seu último destino.
435. Visto que a família é o valor mais querido por nossos povos, cremos que se deve assumir a preocupação por ela como um dos eixos transversais de toda ação evangelizadora da Igreja. Em toda diocese se requer uma pastoral familiar “intensa e vigorosa”243 para proclamar o evangelho da família, promover a cultura da vida e trabalhar para que os direitos das famílias sejam reconhecidos e respeitados.
436. Esperamos que os legisladores, governantes e profissionais da saúde, conscientes da dignidade da vida humana e do fundamento da família em nossos povos, defendam-na e protejam-na dos crimes abomináveis do aborto e da eutanásia; esta é sua responsabilidade. Por isso, diante de leis e disposições governamentais que são injustas à luz da fé e da razão, deve-se favorecer a objeção de consciência. Devemos nos ater à “coerência eucarística”, isto é, ser conscientes de que não podem receber a sagrada comunhão e ao mesmo tempo agir com atos ou palavras contra os mandamentos, em particular quando se propicia o aborto, a eutanásia e outros graves delitos contra a vida e a família. Esta responsabilidade pesa de maneira particular sobre os legisladores, governantes e os profissionais da saúde244.
437. Para tutelar e apoiar a família, a pastoral familiar pode estimular, entre outras, as seguintes ações:
a) Comprometer de uma maneira integral e orgânica ás outras pastorais, os movimentos e associações matrimoniais e familiares a favor das famílias.
b) Estimular projetos que promovam famílias evangelizadas e evangelizadoras.
c) Renovar a preparação remota e próxima para o sacramento do matrimônio e da vida familiar com itinerários pedagógicos de fé245.
d) Promover, em diálogo com os governos e a sociedade, políticas e leis a favor da vida, do matrimônio e da família246.
e) Estimular e promover a educação integral dos membros da família, especialmente daqueles membros da família que estão em situações difíceis, incluindo a dimensão do amor e da sexualidade247.
f) Estimular centros paroquiais e diocesanos com uma pastoral de atenção integral à família, especialmente aquelas que estão em situações difíceis: mães adolescentes e solteiras, viúvas e viúvos, pessoas da terceira idade, crianças abandonadas, etc.
g) Estabelecer programas de formação, atenção e acompanhamento para a paternidade e a maternidade responsáveis.
h) Estudar as causas das crises familiares para encará-las em todos os seus fatores.
i) Continuar oferecendo formação permanente, doutrinal e pedagógica para os agentes de pastoral familiar.
j) Acompanhar com cuidado, prudência e amor compassivo, seguindo as orientações do Magistério248, os casais que vivem em situação irregular, conscientes que os divorciados e casados novamente não são permitidos comungar249. Requerem-se mediações para que a mensagem de salvação chegue a todos. É urgente estimular ações eclesiais, com um trabalho interdisciplinar de teologia e ciências humanas, que ilumine a pastoral e a preparação de agentes especializados para o acompanhamento destes irmãos.
k) Diante das petições de nulidade matrimonial, fazer com que os Tribunais eclesiásticos sejam acessíveis e tenham uma correta e rápida atuação250.
l) Ajudar a criar possibilidades para que os meninos e meninas órfãos e abandonados consigam, pela caridade cristã, condições de acolhida e adoção e possam viver em família.
m) Organizar casas de acolhida e um acompanhamento específico para socorrer com compaixão e solidariedade ás meninas e adolescentes grávidas, ás mães “solteiras”, os lares incompletos.
n) Ter presente que a Palavra de Deus, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, solicita-nos uma atenção especial em relação às viúvas. Procurar uma maneira para que elas recebam uma pastoral que as ajude a enfrentar esta situação, muitas vezes de desamparo e de solidão.
9.2 As crianças
438. A infância, hoje em dia, deve ser destinatária de uma ação prioritária da Igreja, da família e das instituições do Estado, tanto pelas possibilidades que oferece como pela vulnerabilidade a que se encontra exposta. As crianças são dom e sinal da presença de Deus em nosso mundo por sua capacidade de aceitar com simplicidade mensagem evangélica. Jesus os escolheu com especial ternura (cf. Mt 19,14), e apresentou sua capacidade de acolher o Evangelho como modelo parar entrar no Reino de Deus (cf. Mc 10,14; Mt 18,3).
439. Vemos com dor a situação de pobreza, de violência intra-familiar (sobretudo em famílias irregulares ou desintegradas), de abuso sexual, pela qual passa um bom número de nossas crianças: os setores de infância trabalhadora, crianças de rua, crianças portadora de HIV, órfãos, soldados, e crianças enganadas e expostas à pornografia e prostituição forçada, tanto virtual quanto real. Sobretudo, a primeira infância (0 a 6 anos) requer um cuidado e atenção especiais. Não se pode permanecer indiferente diante do sofrimento de tantas crianças inocentes.
440. Por outro lado, a infância, ao ser a primeira etapa da vida do recém-nascido, constitui uma ocasião maravilhosa para a transmissão da fé. Vemos com gratidão a valiosa ação de tantas instituições a serviço da infância.
441. A esse respeito, propomos algumas orientações pastorais:
a) Inspirar-se na atitude de Jesus para com as crianças, de respeito e acolhida como os prediletos do Reino, atendendo a sua formação integral. De importância para toda sua vida é o exemplo de oração de seus pais e avós, que têm a missão de ensinar a seus filhos e netos as primeiras orações.
b) Estabelecer, onde não existam, O Departamento ou Seção da Infância para desenvolver ações pontuais e orgânicas a favor dos meninos e meninas.
c) Promover processos de reconhecimento da infância como um setor decisivo de especial cuidado por parte da Igreja, da Sociedade e do Estado.
d) Tutelar a dignidade e os direitos naturais inalienáveis dos meninos e das meninas, sem prejuízo dos legítimos direitos dos pais. Cuidar para que os meninos recebam a educação adequada a sua faixa etária no âmbito da solidariedade, da afetividade e da sexualidade humana.
e) Apoiar as experiências pastorais de atenção à primeira infância.
f) Estudar e considerar as pedagogias adequadas para a educação na fé das crianças, especialmente em tudo aquilo relacionado à iniciação cristã, privilegiando o momento da primeira comunhão.
g) Valorizar a capacidade missionária dos meninos e das meninas, que não só evangelizam seus próprios companheiros, mas que também podem ser evangelizadores de seus próprios pais.
h) Promover e difundir processos permanentes de pesquisa sobre a infância, que façam sustentável, tanto o reconhecimento de seu cuidado, como as iniciativas a favor da defesa e de sua promoção integral.
i) Fomentar a instituição da Infância Missionária.
9.3 Os adolescentes e jovens
442. Merece especial atenção a etapa da adolescência. Os adolescentes não são crianças nem são jovens. Estão na idade da procura de sua própria identidade, de independência frente a seus pais, de descoberta do grupo. Nesta idade, facilmente podem ser vítimas de falsos líderes constituindo grupos. É necessário estimular a pastoral dos adolescentes, com suas próprias características, que garanta sua perseverança e o crescimento na fé. O adolescente procura uma experiência de amizade com Jesus.
443. Os jovens e adolescentes constituem a grande maioria da população da América latina e do Caribe. Representam um enorme potencial para o presente e futuro da Igreja e de nossos povos como discípulos e missionários do Senhor Jesus. Os jovens são sensíveis para descobrir sua vocação a ser amigos e discípulos de Cristo. São chamados a ser “sentinelas da manhã251”, comprometendo-se na renovação do mundo à luz do Plano de Deus. Não temem o sacrifício nem a entrega da própria vida, mas sim uma vida sem sentido. Por sua generosidade, são chamados a servir a seus irmãos, especialmente aos mais necessitados, com todo seu tempo e sua vida. Tem capacidade para se opor às falsas ilusões de felicidade e aos paraísos enganosos das drogas, do prazer, do álcool e de todas as formas de violência. Em sua procura pelo sentido da vida, são capazes e sensíveis para descobrir o chamado particular que o Senhor Jesus lhes faz. Como discípulos missionários, as novas gerações são chamadas a transmitir a seus irmãos jovens, sem distinção alguma, a corrente de vida que procede de Cristo e a compartilhá-la em comunidade, construindo a Igreja e a sociedade.
444. Por outro lado, constatamos com preocupação que inumeráveis jovens do nosso continente passam por situações que os afetam significativamente: as sequelas da pobreza, que limitam o crescimento harmônico de suas vidas e geram exclusão; a socialização cuja transmissão de valores já não acontece primariamente nas instituições tradicionais, mas em novos ambientes não isentos de uma forte carga de alienação; e sua permeabilidade às formas novas de expressões culturais, produto da globalização, que afeta sua própria identidade pessoal e social. São presa fácil das novas propostas religiosas e pseudo-religiosas. As crises, pelas quais passa a família hoje em dia, produz profundas carências afetivas e conflitos emocionais.
445. Estão muito afetados por uma educação de baixa qualidade, que os deixa por baixo dos níveis necessários de competitividade, somado aos enfoques antropológicos reducionistas, que limitam seus horizontes de vida e dificultam a tomada de decisões duradouras. Vê-se ausência de jovens na esfera política devido á desconfiança que geram as situações de corrupção, o desprestígio dos políticos e a procura de interesses pessoais frente ao bem comum. Constata-se com preocupação suicídios de jovens. Outros não tem possibilidades de estudar ou trabalhar e muitos deixam seus países por não encontrar neles um futuro, dando assim ao fenômeno da mobilidade humana e da migração um rosto juvenil. Preocupa também o uso indiscriminado e abusivo que muitos jovens fazem da comunicação virtual.
446. Diante destes desafios sugerimos algumas linhas de ação:
a) Renovar, em estreita união com a família, de maneira eficaz e realista, a opção preferencial pelos jovens, em continuidade com as Conferências Gerais anteriores, dando novo impulso à Pastoral da Juventude nas comunidades eclesiais (dioceses, paróquias, movimentos, etc).
b) Estimular os Movimentos eclesiais que tem uma pedagogia orientada à evangelização dos jovens e convida-los a colocar mais generosamente suas riquezas carismáticas, educativas e missionárias a serviço das Igrejas locais.
c) Propor aos jovens o encontro com Jesus Cristo vivo e seu seguimento na Igreja, à luz do Plano de Deus, que garanta a realização plena de sua dignidade de ser humano, que estimule-os a formar sua personalidade e que proponha a eles uma opção vocacional específica: o sacerdócio, a vida consagrada ou o matrimônio. Durante o processo de acompanhamento vocacional, irá aos poucos introduzindo gradualmente os jovens na oração pessoal e na lectio divina, na freqüência aos sacramentos da Eucaristia e da Reconciliação, da direção espiritual e do apostolado.
d) Privilegiar na Pastoral da Juventude processos de educação e amadurecimento na fé como resposta de sentido e orientação da vida e garantia de compromisso missionário. De maneira especial, buscar-se-á implementar uma catequese atrativa para os jovens que os introduza no conhecimento do mistério de Cristo, buscando mostrar a eles a beleza da Eucaristia dominical que os leve a descobrir nela Cristo vivo e o mistério fascinante da Igreja.
e) A pastoral da Juventude ajudará os jovens a se formar de maneira gradual, para a ação social e política e a mudança de estruturas, conforme a Doutrina Social da Igreja, fazendo própria a opção preferencial e evangélica pelos pobres e necessitados.
f) É imperativa a capacitação dos jovens para que tenham oportunidades no mundo do trabalho e evitar que caiam na droga e na violência.
g) Nas metodologias pastorais, procurar uma maior sintonia entre o mundo adulto e o mundo dos jovens.
h) Assegurar a participação dos jovens em peregrinações, nas Jornadas nacionais e mundiais da Juventude, com a devida preparação espiritual e missionária e com a companhia de seus pastores.
9.4 O bem-estar dos idosos
447. O acontecimento da apresentação no templo (cf. Lc 2,41-50) coloca-nos diante do encontro das gerações: as crianças e os anciãos. A criança que surge para a vida, assumindo e cumprindo a Lei, e os anciãos, que a festejam com a alegria do Espírito Santo. Crianças e anciãos constróem o futuro dos povos. As crianças porque levarão adiante a história, os anciãos porque transmitem a experiência e a sabedoria presente em suas vidas.
448. O respeito e a gratidão dos anciãos deve ser testemunhado em primeiro lugar por sua própria família. A Palavra de Deus nos desafia de muitas maneiras a respeitar e valorizar os mais velhos e anciãos. Convida-nos, inclusive, a aprender deles, com gratidão e a acompanhá-los em sua solidão e fragilidade. A frase de Jesus: “aos pobres sempre terão com vocês e poderão socorrê-los quando quiserem” (Mc 14,7), pode muito bem ser entendida, porque fazem parte de cada família, povo e nação. No entanto, muitas vezes, são esquecidos ou descuidados pela sociedade e até mesmo por seus próprios familiares.
449. Muitos de nossos idosos gastaram sua vida pelo bem de sua família e da comunidade, a partir de seu lugar e vocação. Muitos são verdadeiros discípulos missionários de Jesus, por seu testemunho e suas obras. Merecem ser reconhecidos como filhos e filhas de Deus, chamados a compartilhar a plenitude do amor e a serem queridos em particular pela cruz de suas doenças, da capacidade diminuída ou da solidão. A família não deve olhar só as dificuldades que traz conviver com eles ou o ter que atende-los. A sociedade não pode considerá-los como um peso ou uma carga. É lamentável que em alguns países não haja políticas sociais que se ocupem suficientemente dos idosos já aposentados, pensionistas, enfermos ou abandonados. Portanto, exortamos a criação de políticas sociais justas e solidárias, que atendam a estas necessidades.
450. A Igreja se sente comprometida a procurar a atenção humana integral de todas as pessoas idosas, também ajudando-as a viver o seguimento de Cristo em sua atual condição e incorporando-as à missão evangelizadora o quanto possível. Por isso, enquanto agradece o trabalho que já vem realizando religiosas, religiosos e voluntários, a Igreja quer renovar suas estruturas pastorais e preparar inclusive mais agentes, a fim de ampliar este valioso serviço de amor.
9.5 A dignidade e participação das mulheres
451. A antropologia cristã ressalta a igual identidade entre homem e mulher em razão de terem sido criados a imagem e semelhança de Deus. O mistério da Trindade nos convida a viver uma comunidade de iguais na diferença. Em uma época marcada pelo machismo, a prática de Jesus foi decisiva para significar a dignidade da mulher e de seu valor indiscutível: falou com elas (cf Jo 4,27), teve singular misericórdia com as pecadoras (cf. Lc 7,36-50; Jo 8,11), curou-as (cf. Mc 5,25-34), reivindicou sua dignidade (cf Jo 8,1-11), escolheu-as como primeiras testemunhas de sua ressurreição (cf. Mt 28,9-10) e incorporou-as ao grupo de pessoas que lhe eram mais próximas (cf. Lc 8,1-3). A figura de Maria, discípula por excelência entre discípulos, é fundamental na recuperação da identidade da mulher e de seu valor na Igreja. O canto do Magnificat mostra Maria como mulher capaz de se comprometer com sua realidade e de ter uma voz profética diante dela.
452. A relação entre a mulher e o homem é de reciprocidade e de colaboração mútua. Trata-se de harmonizar, complementar e trabalhar somando esforços. A mulher é co-responsável, junto com o homem, pelo presente e pelo futuro de nossa sociedade humana.
453. Lamentamos que inumeráveis mulheres de toda condição não sejam valorizadas em sua dignidade, fiquem com freqüência sozinhas e abandonadas, não se reconheçam nelas suficientemente seu abnegado sacrifício e inclusive heróica generosidade no cuidado e educação dos filhos nem na transmissão da fé na família. Muito menos se valoriza nem se promove adequadamente sua indispensável e peculiar participação na construção de uma vida social mais humana e na edificação da Igreja. Ao mesmo tempo, sua urgente dignificação e participação pretende ser distorcida por correntes ideológicas, mascadas pela marca cultural das sociedades de consumo e do espetáculo, que são capazes de submeter as mulheres a novas formas de escravidão. Na América Latina e no Caribe é necessário superar uma mentalidade machista que ignora a novidade do cristianismo, onde se reconhece e proclama a “igual dignidade e responsabilidade da mulher em relação ao homem”252.
454. Nesta hora da América Latina e do Caribe é imperativo escutar o clamor, muitas vezes silenciado, de mulheres que são submetidas a muitas formas de exclusão e de violência em todas as suas formas e em todas as etapas de suas vidas. Entre elas, as mulheres pobres, indígenas e afro-americanas tem sofrido uma dupla marginalização. É necessário que todas as mulheres possam participar plenamente na vida eclesial, familiar, cultural, social e econômica, criando espaços e estruturas que favoreçam uma maior inclusão.
455. As mulheres constituem, geralmente, a maioria de nossas comunidades. São as primeiras transmissoras da fé e colaboradoras dos pastores, que devem atendê-las, valorizá-las e respeitá-las.
456. É necessário valorizar a maternidade como missão excelente das mulheres. Isto não se opõe a seu desenvolvimento profissional e ao exercício de todas as suas dimensões, o qual permite ser fiéis ao plano original de Deus que dá ao casal humano, de forma conjunta, a missão de melhorar a terra. A mulher é insubstituível no lar, na educação dos filhos e na transmissão da fé. Mas isto não exclui a necessidade de sua participação ativa na construção da sociedade. Para isso é necessário propiciar uma formação integral de maneira que as mulheres possam cumprir sua missão na família e na sociedade.
457. A sabedoria do plano de Deus nos exige favorecer o desenvolvimento de sua identidade feminina em reciprocidade e complementaridade com a identidade do homem. Por isso a Igreja é chamada a compartilhar, orientar e acompanhar projetos de promoção da mulher com organismos sociais já existentes, reconhecendo o ministério essencial e espiritual que a mulher leva em suas entranhas: receber a vida, acolhê-la, alimentá-la, dar-lhe a luz, sustentá-la, acompanhá-la e exercitar seu ser mulher criando espaços habitáveis de comunidade e de comunhão. A maternidade não é uma realidade exclusivamente biológica, mas se expressa de diversas maneiras. A vocação materna se cumpre através de muitas formas de amor, compreensão e serviço aos demais. A dimensão maternal também se concretiza, por exemplo, na adoção de crianças, oferecendo-lhes proteção e lar. O compromisso da Igreja nesta esfera é ético e profundamente evangélico.
458. Propomos algumas ações pastorais:
a) Estimular a organização da pastoral de maneira que ajude a descobrir e desenvolver em cada mulher e nos âmbitos eclesiais e sociais o “gênio feminino253” e promova o mais amplo protagonismo das mulheres.
b) Garantir a efetiva presença da mulher nos ministérios que na Igreja são confiados aos leigos, assim como também nas instâncias de planejamento e decisão pastorais, valorizando sua contribuição.
c) Acompanhar as associações femininas que lutam para superar situações difíceis, de vulnerabilidade ou de exclusão.
d) Promover o diálogo com autoridade para a elaboração de programas, leis e políticas públicas que permitam harmonizar a vida de trabalho da mulher com seus deveres de mãe de família.
9.6 A responsabilidade do homem e pai de família
459. O homem, a partir de sua especificidade, é chamado pelo Deus da vida a ocupar um lugar original e necessário na construção da sociedade, na geração da cultura e na realização da história. Profundamente motivados pela bela realidade do amor que tem sua fonte em Jesus Cristo, o homem se sente fortemente convidado a formar uma família. Ali, em uma essencial disposição de reciprocidade e complementaridade, vivem e valorizam para a plenitude de sua vida, a ativa e insubstituível riqueza da contribuição da mulher, que lhes permite reconhecer mais nitidamente sua própria identidade.
460. Enquanto batizado, o homem deve se sentir enviado pela Igreja a todos os campos de atividade que constituem sua vocação e missão dando testemunho como discípulo e missionário de Jesus Cristo na família. No entanto, em não poucos casos, desafortunadamente, termina renunciando a esta responsabilidade e delegando-a às mulheres ou esposas.
461. Tradicionalmente, devemos reconhecer que uma porcentagem significativa deles na América latina e Caribe, se mantém á margem da Igreja e do compromisso que nela são chamados a realizar. Deste modo, afastam-se de Jesus Cristo, da vida plena que tanto desejam e procuram. Esta condição de distância ou indiferença por parte dos homens, que questiona fortemente o estilo de nossa pastoral convencional, contribui para que vá crescendo a separação entre fé e cultura, a gradual perda do que interiormente é essencial e doador de sentido, a fragilidade para resolver adequadamente conflitos e frustrações, à fraqueza para resistir ao embate e seduções de uma cultura consumista, frívola e competitiva, etc. Tudo isto os faz vulneráveis diante da proposta de estilos de vida que, propondo-se como atrativos, terminam sendo desumanizadores. Em um número cada vez mais freqüente deles, vai se abrindo passagem à tentação de ceder à violência, infidelidade, abuso do poder, dependência de drogas, alcoolismo, machismo, corrupção e abandono de seu papel de pais.
462. Por outro lado, uma grande porcentagem de homens se sentem cobrados na família, no trabalho e socialmente. Carentes de maior compreensão, acolhida e afeto da parte dos seus, de serem valorizados de acordo com o que contribuíram materialmente e sem espaços vitais onde compartilhar seus sentimentos mais profundos com toda liberdade, eles são expostos a uma situação de profunda insatisfação que os deixa a mercê do poder desintegrador da cultura atual. Diante desta situação, e em consideração às conseqüências mencionadas traz para a vida matrimonial e para os filhos, faz-se necessário estimular em todas nossas Igrejas locais uma especial atenção pastoral para o pai de família.
463. Propõem-se algumas ações pastorais:
a) Revisar os conteúdos das diversas catequeses preparatórias aos sacramentos, como as atividades e movimentos eclesiais relacionados com a pastoral familiar, para favorecer o anúncio e a reflexão ao redor da vocação que o homem é chamado e viver no matrimônio, na família, na Igreja e na sociedade.
b) Aprofundar nas instâncias pastorais pertinentes, o papel específico que cabe ao homem na construção da família enquanto Igreja Doméstica, especialmente como discípulo e missionário evangelizador de seu lar.
c) Promover em todos os campos de atividade da educação católica e da pastoral de jovens, o anúncio e o desenvolvimento dos valores e atitudes que facilitem aos jovens e às jovens gerarem competências que lhes permitam favorecer o papel de homem na vida matrimonial, no exercício da paternidade e na educação da fé de seus filhos.
d) Desenvolver nas universidades católicas, à luz da antropologia e da moral cristã, a pesquisa e a reflexão necessárias que permitam conhecer a situação atual do mundo dos homens, das conseqüências do impacto dos atuais modelos culturais em sua identidade e missão, e pistas que possam colaborar no projeto de orientações pastorais a respeito.
e) Denunciar uma mentalidade neoliberal que não vê no pai de família mais do que um instrumento de produção e ganância, relegando-o inclusive na família a um papel de mero provedor. A crescente prática de políticas públicas e iniciativas privadas de promover inclusive o domingo como dia de trabalho, é uma medida profundamente destrutiva da família e dos pais.
f) Favorecer na vida da Igreja a ativa participação dos homens, gerando e promovendo espaços e serviços nos campos assinalados.
9.7 A cultura da vida: sua proclamação e sua defesa
464. O ser humano, criado a imagem e semelhança de Deus, também possui uma altíssima dignidade que não podemos pisotear e que somos convocados a respeitar e a promover. A vida é presente gratuito de Deus, dom e tarefa que devemos cuidar desde a concepção, em todas as suas etapas até a morte natural, sem relativismos.
465. A globalização influi nas ciências e em seus métodos, prescindindo dos procedimentos éticos. Como discípulos de Jesus temos que levar o Evangelho ao grande cenário das mesmas, promover o diálogo entre ciência e fé e, nesse contexto, apresentar a defesa da vida. Este diálogo deve ser realizado pela ética e em casos especiais por uma bioética bem fundamentada. A bioética trabalha com esta base epistemológica, de maneira interdisciplinar, onde cada ciência contribui com suas conclusões.
466. Não podemos escapar deste desafio de diálogo entre a fé, a razão e as ciências. Nossa prioridade pela vida e pela família, carregadas de problemáticas que são debatidas nas questões éticas e na bioética, conduz-nos a iluminá-las com o Evangelho e o Magistério da Igreja254.
467. Hoje, assistimos hoje a novos desafios que nos pedem para ser vozes dos que não têm voz. A criança que está crescendo no seio materno e nas pessoas que se encontram no ocaso de suas vidas, são uma voz de vida digna que grita ao céu e que não pode deixar de nos estremecer. A liberalização e banalização das práticas abortivas são crimes abomináveis, assim como a eutanásia, a manipulação genética e embrionária, ensaios médicos contrários a ética, pena de morte e tantas outras maneiras de atentar contra a dignidade e a vida do ser humano. Se quisermos sustentar um fundamento sólido e inviolável para os direitos humanos, é indispensável reconhecer que a vida humana deve ser defendida sempre, desde o momento da fecundação. De outra maneira, as circunstâncias e conveniências dos poderosos sempre encontrarão desculpas para maltratar as pessoas255.
468. Os desejos de vida, de paz, de fraternidade e de felicidade não encontram resposta em meios aos ídolos do lucro e da eficácia, da insensibilidade diante do sofrimento alheio, dos ataques à vida intra-uterina, a mortalidade infantil, a deterioração de alguns hospitais e todas as modalidade de violência contra crianças, jovens, homens e mulheres. Isto sublinha a importância da luta pela vida e pela dignidade e integridade da pessoa humana. A defesa fundamental da dignidade e destes valores começa na família.
469. A fim de que discípulos e missionários louvem a Deus dando graças pela vida e servindo à mesma, propomos as seguintes ações:
a) Continuar a promoção, nas Conferências Episcopais e nas dioceses, de cursos sobre família e questões éticas para os Bispos e para os agentes de pastorais que possam ajudar a fundamentar com solidez os diálogos a respeito dos problemas e situações particulares sobre a vida.
b) Procurar que presbíteros, diáconos, religiosos e leigos busquem estudos universitários de moral familiar, questões éticas e, quando seja possível, cursos mais especializados de bioética256.
c) Promover foros, painéis, seminários e congressos que estudem, reflitam e analisem temas concretos da atualidade sobre a vida em suas diversas manifestações e, sobretudo, no ser humano, especialmente no que se refere ao respeito pela vida desde a concepção até sua morte natural.
d) Pedir às universidades católicas para organizar programas de bioética acessíveis a todos e tomem posição pública diante dos grandes temas da bioética.
e) Criar nas Conferências Episcopais um comitê de ética e bioética, com pessoas preparadas no tema, que garantam fidelidade e respeito à doutrina do Magistério da Igreja sobre a vida, para que seja a instância que pesquise, estude, discuta e atualize a comunidade no momento que o debate público seja necessário. Este comitê enfrentará as realidades que se apresentarão na localidade, no país ou no mundo, para defender e promover a vida no momento oportuno.
f) Oferecer aos matrimônios programas de formação em paternidade responsável e sobre o uso dos métodos naturais de regulação da natalidade, como pedagogia exigente de vida e de amor257.
g) Apoiar e acompanhar pastoralmente e com especial ternura e solidariedade as mulheres que decidiram não abortar e acolher com misericórdia aquelas que abortaram para ajudá-las a curar suas graves feridas e convida-las a ser defensoras da vida. O aborto faz duas vítimas: certamente, a criança, mas, também, a mãe.
h) Promover a formação e ação de leigos competentes, anima-los a que se organizem para defender a vida e a família e estimula-los a participar em organismos nacionais e internacionais.
i) Assegurar que se incorpore a objeção de consciência nas legislações e cuidar para que seja respeitada pelas administrações públicas.
9.8 O cuidado com o meio-ambiente
470. Como discípulos de Jesus, sentimo-nos convidados a dar graças pelo dom da criação, reflexo da sabedoria e da beleza do Logos criador. No desígnio maravilhoso de Deus, o homem e a mulher são convocados a viver em comunhão com Ele, em comunhão entre eles e com toda a criação. O Deus da vida encomendou ao ser humano sua obra criadora para que “a cultivasse e a guardasse” (Gn 2,15). Jesus conhecia bem a preocupação do Pai pelas criaturas que Ele alimenta (cf. Lc 12,24) e embeleza (cf. Lc 12,27). E enquanto andava pelos caminhos de sua terra não só se detinha para contemplar a beleza da natureza, mas também convidava seus discípulos a reconhecer a mensagem escondida nas coisas (cf. Lc 12,24-27; Jo 4,35). As criaturas do Pai dão glória “somente com sua existência”258, e por isso o ser humano deve fazer uso delas com cuidado e delicadeza259.
471. A América Latina e o Caribe, estão se conscientizando da natureza como uma herança gratuita que recebemos para proteger, como espaço precioso da convivência humana e como responsabilidade cuidadosa do senhorio do homem para o bem de todos. Esta herança muitas vezes se manifesta frágil e indefesa diante dos poderes econômicos e tecnológicos. Por isso, como profetas da vida, queremos insistir que, nas intervenções sobre os recursos naturais, não predominem os interesses de grupos econômicos que arrasam irracionalmente as fontes de vida, em prejuízo de nações inteiras e da própria humanidade. As gerações que nos sucederão têm direito a receber um mundo habitável e não um planeta com ar contaminado. Felizmente, em algumas escolas católicas, começou-se a introduzir entre as disciplinas uma educação em relação à responsabilidade ecológica.
472. A Igreja agradece a todos os que se ocupam da defesa da vida e do ambiente. É necessário dar particular importância à mais grave destruição em curso da ecologia humana260. Ela está próxima aos homens do campo que, com amor generoso, trabalham duramente a terra para tirar, à vezes em condições extremamente difíceis, o sustento para suas famílias e contribuir com todos os frutos da terra. Valoriza especialmente os indígenas por seu respeito à natureza e pelo amor à mãe terra como fonte de alimento, casa comum e altar do compartilhar humano.
473. A riqueza natural da América Latina e do Caribe experimentam hoje uma exploração irracional que vai deixando um rastro de dilapidação, e inclusive de morte por toda nossa região. Em todo esse processo o atual modelo econômico tem uma enorme responsabilidade pois privilegia o desmedido afã pela riqueza, acima da vida das pessoas e dos povos e do respeito racional da natureza. A devastação de nossas florestas e da biodiversidade mediante uma atitude predatória e egoísta, envolve a responsabilidade moral daqueles que a promovem, porque coloca em perigo a vida de milhões de pessoas e, em especial, do habitat dos homens do campo e indígenas, que são expulsos para as terras improdutivas e para as grandes cidades para viverem amontoados nos cinturões de miséria. Nossa região tem necessidade de progredir em seu desenvolvimento agro-industrial para valorizar as riquezas de suas terras e suas capacidades humanas a serviço do bem-comum. Porém, não podemos deixar de mencionar os problemas que uma industrialização selvagem e descontrolada causa em nossas cidades e no campo, que vai contaminando o ambiente com todo tipo de dejetos orgânicos e químicos. Da mesma maneira é preciso alertar a respeito das indústrias extrativas de recursos que, quando não tem procedimentos para controlar e neutralizar seus efeitos danosos sobre o ambiente circundante, produzem a eliminação das florestas, a contaminação da água e transformam as regiões exploradas em imensos desertos.
474. Diante desta situação, oferecemos algumas propostas e orientações:
a) Evangelizar nossos povos para descubram o dom da criação, sabendo contempla-la e cuidar dela como casa de todos os seres vivos e matriz da vida do planeta, a fim de exercitar responsavelmente o senhorio humano sobre a terra e sobre os recursos para que possam render todos os seus frutos em uma destinação universal, educando para um estilo de vida de sobriedade e austeridade solidárias.
b) Aprofundar a presença pastoral nas populações mais frágeis e ameaçadas pelo desenvolvimento predatório e apoiá-las em seus esforços para conseguir uma eqüitativa distribuição da terra, da água e dos espaços urbanos.
c) Procurar um modelo de desenvolvimento alternativo261, integral e solidário, baseado em uma ética que inclua a responsabilidade por uma autêntica ecologia natural e humana, que se fundamente no evangelho da justiça, da solidariedade e do destino universal dos bens, e que supere a lógica utilitarista e individualista, que não submete os poderes econômicos e tecnológicos a critérios éticos. Portanto, estimular nossos homens do campo a se organizarem de tal maneira que possam conseguir sua justa reivindicação.
d) Empenhar nossos esforços na promulgação de políticas públicas e participações cidadãs que garantam a proteção, conservação e restauração da natureza.
e) Determinar medidas de monitoramento e de controle social sobre a aplicação dos padrões ambientais internacionais nos países.
475. Criar nas Américas consciência sobre a importância da Amazônia para toda a humanidade. Estabelecer entre as Igrejas locais de diversos países sul-americanos que estão na bacia amazônica uma pastoral de conjunto com prioridades diferenciadas para criar um modelo de desenvolvimento que privilegie os pobres e sirva ao bem comum. Apoiar a Igreja que vive na Amazônia, com os recursos humanos e financeiros necessários para que siga proclamando o evangelho da vida e desenvolva seu trabalho pastoral na formação de leigos e sacerdotes através de seminários, cursos, intercâmbios, visitas às comunidades e material educativo.
CAPÍTULO 10
NOSSOS POVOS E A CULTURA
10.1 A cultura e sua evangelização
476. A cultura, em sua compreensão maior, representa o modo particular com o qual os homens e os povos cultivam sua relação com a natureza e com seus irmãos, com eles mesmos e com Deus, a fim de conseguir uma existência plenamente humana262. Enquanto tal, a cultura é patrimônio comum dos povos e também da América Latina e do Caribe.
477. A V Conferência em Aparecida olha positivamente e com verdadeira empatia as diferentes formas de cultura presentes em nosso continente. A fé só é adequadamente professada, entendida e vivida quando penetra profundamente no substrato cultural de um povo263. Deste modo, toda a importância da cultura para a evangelização aparece, pois a salvação dada por Jesus Cristo deve ser luz e força para todos os desejos, para as situações alegres ou sofridas e para as questões presentes nas culturas respectivas dos povos. O encontro da fé com as culturas purifica-as, permite que desenvolvam suas virtualidades, enriquece-as, pois todas elas procuram em sua última instância a verdade, que é Cristo (Jo 14,6).
478. Com o Santo Padre damos graças pelo fato de que a Igreja, “ajudando os fiéis cristãos a viverem sua fé com alegria e coerência” tem sido, ao longo de sua história neste continente, criadora e animadora de cultura: “A fé em Deus tem animado a vida e a cultura destes povos durantes mais de cinco séculos”. Esta realidade foi expressa na “arte, na música, na literatura e, sobretudo, nas tradições religiosas e na idiossincrasia de suas gentes, unidas por uma mesma história e por um mesmo credo, formando uma grande sintonia na diversidade de culturas e de línguas!264.
479. Com a inculturação da fé, a Igreja se enriquece com novas expressões e valores, manifestando e celebrando cada vez melhor o mistério de Cristo, conseguindo unir mais a fé à vida e contribuindo, assim, para uma catolicidade mais plena, não só geográfica, mas também cultural. No entanto, este patrimônio cultural latino-americano e caribenho se vê confrontado com a cultura atual, que apresenta luzes e sombras. Devemos considera-la com empatia para entende-la, mas também com uma postura crítica para descobrir o que nela é fruto da limitação humana e do pecado. Ela apresenta muitas e sucessivas mudanças, provocadas por novos conhecimentos e descobrimentos da ciência e da tecnologia. Assim se desvanece uma única imagem do mundo que oferecia orientação para a vida cristã. Recai, portanto, sobre o indivíduo toda a responsabilidade de construir sua personalidade e plasmar sua identidade social. Assim temos, por um lado, a emergência da subjetividade, do respeito à dignidade e à liberdade de cada um, sem dúvida uma importante conquista da humanidade. Por outro lado, este mesmo pluralismo de ordem cultural e religiosa, propagado fortemente por uma cultura globalizada, acaba por erigir o individualismo como característica dominante da atual sociedade, responsável pelo relativismo ético e pela crise da família.
480. Muitos católicos se encontram desorientados frente a esta mudança cultural. Compete á Igreja denunciar claramente “estes modelos antropológicos incompatíveis com a natureza e a dignidade do homem”265. É necessário apresentar a pessoa humana como o centro de toda a vida social e cultural, resultando nela: a dignidade de ser imagem e semelhança de Deus e a vocação de ser filhos no Filho, chamados a compartilhar sua vida por toda a eternidade. A fé cristã nos mostra Jesus Cristo como a verdade última do ser humano266, o modelo no qual o ser humano se realiza em todo seu esplendor ontológico e existencial. Anuncia-lo integralmente em nossos dias exige coragem e espírito profético. Neutralizar a cultura de morte com a cultura cristã da solidariedade é um imperativo que diz respeito a todos nós e que foi um objetivo constante do ensino social da Igreja. No entanto, o anúncio do Evangelho não pode prescindir da cultura atual. Esta deve ser conhecida, avaliada e, em certo sentido, assumida pela Igreja, com uma linguagem compreendida por nossos contemporâneos. Somente assim a fé cristã poderá aparecer como realidade pertinente e significativa de salvação. Mas esta mesma fé deverá gerar modelos culturais alternativos para a sociedade atual. Os cristãos, com os talentos que têm recebido, talento apropriados deverão ser criativos em seus campos de atuação: o mundo da cultura, da política, da opinião pública, da arte e da ciência.
10.2 A educação como bem público
481. Anteriormente nos referimos à educação católica, mas, como pastores, não podemos ignorar a missão do Estado no campo educativo, velando de um modo particular pela educação das crianças e dos jovens. Estes centros educativos não deveriam ignorar que a abertura à transcendência é uma dimensão da vida humana, através da qual a formação integral das pessoas reivindica a inclusão de conteúdos religiosos.
482. A Igreja crê que “as crianças e os adolescentes têm direito de ser estimulados a apreciar com reta consciência os valores morais, prestando a esses valores sua adesão pessoal e também de ser estimulados a conhecer e amar mais a Deus. A Igreja roga, pois, encarecidamente a todos os que governam os povos, ou que estão à frente da educação, procurem que a juventude nunca se veja privada deste sagrado direito”267.
483. Diante das dificuldade que encontramos em vários países a esse respeito, queremos nos empenhar na formação religiosa dos fiéis que assistem às escolas públicas de gestão estatal, procurando acompanha-los também através de outras instâncias formativas em nossas paróquias e dioceses. Ao mesmo tempo, agradecemos a dedicação dos professores de religião nas escolas públicas e os animamos nesta tarefa. Estimulamo-los para que promovam uma capacitação doutrinal e pedagógica. Agradecemos também àqueles que, pela oração e pela vida comunitária, esforçam-se por ser testemunho de fé e de coerência nestas escolas.
10.3 Pastoral da Comunicação social
484. A revolução tecnológica e os processos de globalização formatam o mundo atual como uma grande cultura midiática. Isto envolve uma capacidade para reconhecer as novas linguagens, que podem favorecer uma maior humanização global. Estas novas linguagens configuram um elemento articulador das mudanças na sociedade.
485. “Nosso século tem sido influenciado pelos meios de comunicação social, por isso, o primeiro anúncio, a catequese ou o posterior aprofundamento da fé, não podem prescindir desses meios”. “Colocados a serviço do Evangelho, eles oferecem a possibilidade de difundir quase sem limites o campo de audição da Palavra de Deus, fazendo chegar a Boa Nova a milhões de pessoas. A Igreja se sentiria culpada diante de Deus se não empregasse esses poderosos meios, que a inteligência humana aperfeiçoa cada vez mais. Com eles, a Igreja ‘proclama a partir dos telhados’ (cf. Mt 10,27; Lc 12,3) a mensagem de que é depositária. Neles, encontra uma versão moderna e eficaz do ‘púlpito’. Graças a eles, pode falar às multidões”268.
486. A fim de formar discípulos e missionários neste campo, nós, bispos reunidos na V Conferência, comprometemo-nos a acompanhar os comunicadores, procurando:
a) Conhecer e valorizar esta nova cultura da comunicação.
b) Promover a formação profissional na cultura da comunicação de todos os agentes e cristãos.
c) Formar comunicadores profissionais competentes e comprometidos com os valores humanos e cristãos na transformação evangélica da sociedade, com particular atenção aos proprietários, diretores, programadores e locutores.
d) Apoiar e otimizar, por parte da Igreja, a criação de meios de comunicação social próprios, tanto nos setores televisivos e de rádio, como nos sites de Internet e nos meios impressos;
e) Estar presente nos meios de comunicação de massa: imprensa, rádio e TV, cinema digital, sites de Internet, fóruns e tantos outros sistemas para introduzir neles o mistério de Cristo.
f) Educar na formação crítica quanto ao uso dos meios de comunicação a partir da primeira idade;
g) Animar as iniciativas existentes ou a serem criadas neste campo, com espírito de comunhão.
h) Promover leis para criar nova cultura que protejam as crianças, jovens e as pessoas mais vulneráveis para que a comunicação não transgrida os valores e, ao contrário, criem critérios válidos de discernimento269.
i) Desenvolver uma política de comunicação capaz de ajudar tanto as pastorais de comunicação como os meios de comunicação de inspiração católica a encontrar seu lugar na missão evangelizadora da Igreja.
487. A internet, vista dentro do panorama da comunicação social, deve ser entendida na linha já proclamada no Concílio Vaticano II como uma das “maravilhosas invenções da tecnologia”270. “Para a Igreja, o novo mundo do espaço cibernético é uma exortação à grande aventura da utilização de seu potencial para proclamar a mensagem evangélica. Este desafio está no centro do que significa, no início do milênio, seguir o mandado do Senhor, de “avançar”: Dunc in altum! (Lc 5,4)”271.
488. “A Igreja se aproxima a este novo meio com realismo e confiança. Como os outros instrumentos de comunicação, ele é um meio e não um fim em si mesmo. A Internet pode oferecer magníficas oportunidades de evangelização, se usada com competência e uma clara consciência de suas forças e fraquezas”272.
489. Os meios de comunicação, em geral, não substituem as relações pessoais nem a vida comunitária. No entanto, os sites podem reforçar e estimular o intercâmbio de experiências e de informações que intensifiquem a prática religiosa através de acompanhamentos e orientações. Também na família devem aos pais alertar seus filhos para o uso consciente dos conteúdos disponíveis na Internet, para complementar sua formação educacional e moral.
490. Visto que a exclusão digital é evidente, as paróquias, comunidades, centros culturais e instituições educacionais católicas poderiam ser estimuladoras da criação de pontos de rede e de salas digitais para promover a inclusão, desenvolvendo novas iniciativas e aproveitando, com um olhar positivo, aquelas que já existem. Na América Latina e no Caribe existem revistas, jornais, sites, portais e serviços on line de conteúdos informativos e formativos, além de orientações religiosas e sociais diversas, tais como “sacerdote”, “orientador espiritual”, “orientador vocacional”, “professor”, “médico”, entre outros. Existem inumeráveis escolas e instituições católicas que oferecem cursos a distância de teologia e de cultura bíblica.
10.4 Novos lugares e centros de decisão
491. Queremos felicitar e incentivar a tantos discípulos e missionários de Jesus Cristo que, com sua presença ética coerente, continuam semeando os valores evangélicos nos ambientes onde tradicionalmente se faz cultura e nos novos lugares: o mundo das comunicações, a construção da paz, o desenvolvimento e a libertação dos povos, sobretudo das minorias, a promoção da mulher e das crianças, a ecologia e a proteção da natureza. E “o vastíssimo lugar da cultura, da experimentação científica, das relações internacionais”273. Evangelizar a cultura, longe de abandonar a opção preferencial pelos pobres e pelo compromisso com a realidade, nasce do amor apaixonado por Cristo, que acompanha o Povo de Deus na missão de inculturar o Evangelho na história, ardente e infatigável em sua caridade humana.
492. Uma tarefa de grande importância é a formação de pensadores e pessoas que estejam nos níveis de decisão. Para isso, devemos empregar esforço e criatividade na evangelização de empresários, políticos e formadores de opinião no mundo do trabalho, dirigentes sindicais, cooperativos e comunitários.
493. Na cultura atual, estão se abrindo novos campos missionários e pastorais que se abrem. Um deles é, sem dúvida, a pastoral do turismo274 e do entretenimento, que tem um campo imenso de realização nos clubes, nos esportes, no cinema, centros comerciais e outras opções que diariamente chamam a atenção e pedem para ser evangelizados.
494. Diante da falsa visão de uma incompatibilidade entre fé e ciência tão difundida em nossos dias, a Igreja proclama que a fé não é irracional. “Fé e razão são duas asas pelas quais o espírito humano se eleva na contemplação da verdade”275. Por isto, valorizamos a tantos homens e mulheres de fé e ciência, que aprenderam a ver na beleza da natureza os sinais do Mistério, do amor e da bondade de Deus, e são sinais luminosos que ajudam a compreender que o livro da natureza e da Sagrada Escritura falam do mesmo Verbo que se fez carne.
495. Queremos valorizar sempre mais os espaços de diálogo entre fé e ciência, inclusive nos meios de comunicação. Uma forma de fazê-lo é através da difusão da reflexão e da obra dos grandes pensadores católicos, especialmente do século XX, como referências para a justa compreensão da ciência.
496. Deus não é só a suma Verdade. Ele é também a suma Bondade e a suprema Beleza. Por isso, “a sociedade tem a necessidade de artistas da mesma maneira que necessita de cientistas, técnicos, trabalhadores, especialistas, testemunhas da fé, professores, pais e mães, que garantam o crescimento da pessoa e o progresso da comunidade, através daquela forma sublime de arte que é a “arte de educar”276.
497. É necessário comunicar os valores evangélicos de maneira positiva e propositiva. São muitos os que se dizem descontentes, não tanto com o conteúdo da doutrina da Igreja, mas com a forma como ela é apresentada. Para isso, na elaboração de nossos planos pastorais queremos:
a) Favorecer a formação de um laicato capaz de atuar como verdadeiro sujeito eclesial e competente interlocutor entre a Igreja e a sociedade e entre a sociedade e a Igreja.
b) Otimizar o uso dos meios de comunicação católicos, fazendo-os mais atuantes e eficazes, seja para a comunicação da fé, seja para o diálogo entre a Igreja e a sociedade.
c) Atuar com os artistas, esportistas, profissionais da moda, jornalistas, comunicadores e apresentadores, assim como com os produtores de informação nos meios de comunicação, com os intelectuais, professores, líderes comunitários e religiosos.
d) Resgatar o papel do sacerdote como formador de opinião.
498. Aproveitando as experiências dos Centros de Fé e Cultura ou Centros Culturais Católicos, trataremos de criar ou dinamizar os grupos de diálogo entre a Igreja e os formadores de opinião dos diversos campos. Convocamos nossas Universidades Católicas para que sejam cada vez mais lugar de produção e irradiação do diálogo entre fé e razão e do pensamento católico.
499. Cabe também às Igrejas da América Latina e do Caribe criar oportunidades para a utilização da arte na catequese de crianças, adolescentes e adultos, assim como nas diferentes pastorais da Igreja. É necessário também que as ações da Igreja nesse campo sejam acompanhadas por um melhora técnica e profissional exigida pela própria expressão artística. Por outro lado, é também necessária a formação de uma consciência crítica que permita julgar com critérios objetivos a qualidade artística do que realizamos.
500. É fundamental que as celebrações litúrgicas incorporem em suas manifestações elementos artísticos que possam transformar e preparar a assembléia para o encontro com Cristo. A valorização dos espaços de cultura existente, onde se incluem os próprios templos, é uma tarefa essencial para a evangelização pela cultura. Nessa linha, também se deve incentivar a criação de centros culturais católicos, necessários especialmente nas áreas mais carentes onde o acesso à cultura é mais urgente e reivindica melhorar o sentido do humano.
10.5 Discípulos e missionários na vida pública
501. Os discípulos e missionários de Cristo devem iluminar com a luz do Evangelho todos os espaços da vida social. A opção preferencial pelos pobres, de raiz evangélica, exige uma atenção pastoral atenta aos construtores da sociedade277. Se muitas das estruturas atuais geram pobreza, em parte é devido à falta de fidelidade a compromissos evangélicos de muitos cristãos com especiais responsabilidades políticas, econômicas e culturais.
502. A realidade atual de nosso continente manifesta que existe “uma notável ausência no âmbito político, comunicativo e universitário, de vozes e iniciativas de líderes católicos de forte personalidade e de vocação abnegada que sejam coerentes com suas convicções éticas e religiosas”278.
503. Entre os sinais de preocupação, destaca-se, como uma das mais relevantes a concepção que se tem formado do ser humano, homem e mulher. Agressões à vida, em todas as suas instâncias, em especial contra os mais inocentes e fracos, pobreza aguda e exclusão social, corrupção e relativismo ético, entre outros aspectos, tem como referência um ser humano, na prática, fechado a Deus e ao outro.
504. Os fortes poderes, animados ou por um antigo laicismo exacerbado, ou por um relativismo ético que se propõe como fundamento da democracia, pretende refutar toda presença e contribuição da Igreja na vida pública das nações e a pressionam para que se retire para os templos e para seus serviços “religiosos”. Consciente da distinção entre a comunidade política e comunidade religiosa, base de sã laicidade, a Igreja não deixará de se preocupar pelo bem comum dos povos e, em especial, pela defesa de princípios éticos não negociáveis porque estão arraigados na natureza humana.
505. São os leigos de nosso continente, conscientes de sua chamada à santidade em virtude de sua vocação batismal, os que têm de atuar à maneira de um fermento na massa para construir uma cidade temporal que esteja de acordo com o projeto de Deus. A coerência entre fé e vida no âmbito político, econômico e social exige a formação da consciência, que se traduz em um conhecimento da Doutrina Social da Igreja. Para uma adequada formação na mesma, será de muita utilidade o Compêndio da Doutrina Social da Igreja. A V Conferência se compromete a levar a cabo uma catequese social incisiva, porque “a vida cristã não se expressa somente nas virtudes pessoais, mas também nas virtudes sociais e políticas”279.
506. O discípulo e missionário de Cristo que trabalha nos âmbitos da política, da economia e nos centros de decisões sofre a influência de uma cultura frequentemente dominada pelo materialismo, pelos interesses egoístas e por uma concepção do homem contrária à visão cristã. Por isso, é imprescindível que o discípulo se fundamente no seguimento do Senhor que concede a ele a força necessária, não só para não sucumbir diante das insídias do materialismo e do egoísmo, mas para construir ao redor dele um consenso moral sobre os valores fundamentais que tornam possível a construção de uma sociedade justa.
507. Pensemos em quão necessário é a integridade moral nos políticos. Muitos dos países latino-americanos e caribenhos, mas também em outros continentes vivem na miséria, por problemas endêmicos de corrupção. Quanta disciplina de integridade moral necessitamos, entendendo essa disciplina no sentido cristão do auto-domínio para fazer o bem, para ser servidor da verdade e do desenvolvimento de nossas tarefas sem nos deixar corromper por favores, interesses e vantagens. É necessário muita força e muita perseverança para conservar a honestidade que deve surgir de uma nova educação que rompa o círculo vicioso da corrupção que reina absoluta. Realmente necessitamos de muito esforço para avançar na criação de uma verdadeira riqueza moral que nos permita pré-ver nosso próprio futuro.
508. Nós, bispos reunidos na V Conferência, queremos acompanhar os construtores da sociedade, visto que é a vocação fundamental da Igreja neste setor, formar as consciências, ser advogada da justiça e da verdade e educar nas virtudes individuais e políticas280. Queremos chamar ao sentido de responsabilidade dos leigos para que estejam presentes na vida pública e mais concretamente “na formação dos consensos necessários e na oposição contra a injustiça”281.
10.6 A Pastoral Urbana
509. O cristão de hoje não se encontra mais na primeira linha da produção cultural, mas recebe sua influência e seus impactos. As grandes cidades são laboratórios dessa cultura contemporânea complexa e plural.
510. A cidade se converteu no lugar próprio das novas culturas que estão sendo geradas e se impondo, com uma nova linguagem e uma nova simbologia. Esta mentalidade urbana se difunde também, no próprio mundo rural. Definitivamente, a cidade procura harmonizar a necessidade de desenvolvimento com o desenvolvimento das necessidades, fracassando frequentemente neste propósito.
511. No mundo urbano acontecem complexas transformações sócio-econômicas, culturais, políticas e religiosas que fazem impacto em todas as dimensões da vida. É composto de cidades satélites e de bairros periféricos.
512. Na cidade convivem diferentes categorias sociais tais como as elites econômicas, sociais e políticas; a classe média com seus diferentes níveis e a grande multidão dos pobres. Nela, coexistem binômios que a desafiam cotidianamente: tradição- modernidade; globalidade-particularidade; inclusão-exclusão; personalização-despersonalização; linguagem secular-linguagem religiosa; homogeneidade-pluralidade, cultura urbana-pluri-multiculturalismo.
513. A Igreja em seu início se formou nas grandes cidades de seu tempo e se serviu delas para se propagar. Por isso, podemos realizar com alegria e coragem a evangelização da cidade atual. Diante da nova realidade novas experiências se realizam na Igreja, tais como a renovação das paróquias, setorização, novos ministérios, novas associações, grupos, comunidades e movimentos. Mas se percebem atitudes de medo em relação à pastoral urbana; tendência a se fechar nos métodos antigos e de tomar uma atitude de defesa diante da nova cultura, com sentimentos de impotência diante das grandes dificuldades das cidades.
514. A fé nos ensina que Deus vive na cidade, em meio as suas alegrias, desejos e esperanças, com também em meio as suas dores e sofrimentos. As sombras que marcam o cotidiano das cidades, como exemplo, a violência, pobreza, individualismo e exclusão, não podem nos impedir que busquemos e contemplemos a Deus da vida também nos ambientes urbanos. As cidades são lugares de liberdade e de oportunidade. Nelas, as pessoas tem a possibilidade de conhecer mais pessoas, interagir e conviver com elas. Nas cidades é possível experimentar vínculos de fraternidade, solidariedade e universalidade. Nelas, o ser humano é constantemente chamado a caminhar sempre mais ao encontro do outro, conviver com o diferente, aceita-lo e ser aceito por ele.
515. O projeto de Deus é “a Cidade Santa, a nova Jerusalém”, que desce do céu, de junto a Deus, “vestida como uma noiva que se adorna para seu esposo”, que é “a tenda que Deus instalou entre os homens. Acampará com eles; eles serão seu povo e o próprio Deus estará com eles. Enxugará as lágrimas de seus olhos e não haverá morte nem luto, nem pranto, nem dor, porque tudo o que é antigo terá desaparecido” (Ap 21,2-4). Este projeto em sua plenitude é futuro, mas já está se realizando em Jesus Cristo, “o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim” (Ap 21,6), que nos diz “Eu faço novas todas as coisas” (Ao 21,5).
516. A Igreja está a serviço da realização desta Cidade Santa, através da proclamação e da vivência da Palavra, da celebração da Liturgia, da comunhão fraterna e do serviço, especialmente aos mais pobres e aos que mais sofrem e, dessa forma, através de Cristo como fermento do Reino vai transformando a cidade atual.
517. Reconhecendo e agradecendo o trabalho renovador que já se realiza em muitos centros urbanos, a V Conferência propõe e recomenda uma nova pastoral urbana que:
a) Responda aos grandes desafios da crescente urbanização.
b) Seja capaz de atender às variadas e complexas categorias sociais, econômicas, políticas e culturais: pobres, classe média e elites.
c) Desenvolva uma espiritualidade da gratidão, da misericórdia, da solidariedade fraterna, atitudes próprias de quem ama desinteressadamente e sem pedir recompensa.
d) Abra-se a novas experiências, estilos e linguagens que possam encarnar o Evangelho na cidade.
e) Transforme as paróquias cada vez mais em comunidades de comunidades.
f) Aposte mais intensamente na experiência de comunidades ambientais, integradas em nível supra-paroquial e diocesano.
g) Integre os elementos próprios da vida cristã: a Palavra, a Liturgia, a comunhão fraterna e o serviço, especialmente aos que sofrem pobreza econômica e novas formas de pobreza.
h) Difunda a Palavra de Deus, anuncie-a com alegria e ousadia e realize a formação dos leigos de tal modo que possam responder as grandes perguntas e aspirações de hoje e se inseriram nos diferentes ambientes, estruturas e centros de decisão da vida urbana.
i) Fomente a pastoral da acolhida aos que chegam à cidade e aos que já vivem nela, passando de um passivo esperar a um ativo buscar e chegar aos que estão longe com novas estratégias tais como visitas às casas, o uso dos novos meios de comunicação social e a constante proximidade ao que constitui para cada pessoa a sua cotidianidade.
j) Ofereça atenção especial ao mundo do sofrimento urbano, isto é, que cuide dos caídos ao longo do caminho e aos que se encontram nos hospitais, encarcerados, excluídos, dependentes das drogas, habitantes das novas periferias, nas novas urbanizações e das famílias que, desintegradas, convivem de fato.
k) Procure a presença da Igreja, por meio de novas paróquias e capelas, comunidades cristãs e centros de pastoral, nas novas concentrações humanas que crescem aceleradamente nas periferias urbanas das grandes cidades devido às migrações internas e situações de exclusão;
518. Para que os habitantes dos centros urbanos e de suas periferias, cristãos ou não cristãos possam encontrar em Cristo a plenitude de vida, sentimos a urgência de que os agentes de pastoral, enquanto discípulos e missionários, esforcem-se em desenvolver:
a) Um estilo pastoral adequado à realidade urbana com atenção especial a linguagem, às estruturas e práticas pastorais assim como aos horários;
b) Um plano de pastoral orgânico e articulado que se integre a um projeto comum às paróquias, comunidades de vida consagrada, pequenas comunidades, movimentos e instituições que incidem na cidade, e que seu objetivo seja chegar ao conjunto da cidade. Nos casos de grandes cidades nas quais existem várias Dioceses, faz-se necessário um plano inter-diocesano;
c) Uma setorização das paróquias em unidade menores que permitam a proximidade e um serviço mais eficaz;
d) Um processo de iniciação cristã e de formação permanente que retroalimente a fé dos discípulos do Senhor integrando o conhecimento, o sentimento e o comportamento;
e) Serviços de atenção, acolhida pessoal, direção espiritual e do sacramento da reconciliação, respondendo á sociedade, ás grandes feridas psicológicas que sofrem muitos nas cidades, levando em consideração as relações inter-pessoais;
f) Uma atenção especializada aos leigos em suas diferentes categorias: profissionais, empresariais e trabalhadores;
g) Processos graduais de formação cristã com a realização de grandes eventos de multidões, que mobilizem a cidade, que façam sentir que a cidade é um conjunto, que é um todo, que saibam responder á afetividade de seus cidadãos e, em uma linguagem simbólica, saibam transmitir o Evangelho a todas as pessoas que vivem na cidade;
h) Estratégias para chegar aos lugares fechados das cidades como grandes aglomerados de casas, condomínios, prédios residenciais ou nas favelas;
i) Uma presença profética que saiba levantar a voz em relação a questões de valores e princípios do Reino de Deus, ainda que contradiga todas as opiniões, provoque ataques e se fique só no anúncio. Isto é, que seja farol, cidades colocada no alto para iluminar;
j) Uma maior presença nos centros de decisão da cidade, tanto nas estruturas administrativas como nas organizações comunitárias, profissionais e de todo tipo de associação para velar pelo bem comum e promover os valores do Reino;
k) A formação e acompanhamento de leigos e leigas que, influindo nos centros de opinião, organizem-se entre si e possam ser assessores para toda a ação social;
l) Uma pastoral que leve em consideração a beleza no anúncio da Palavra e nas diversas iniciativas, ajudando a descobrir a plena beleza que é Deus;
m) Serviços especiais que respondam às diferentes atividades da cidade: trabalho, descanso, esportes, turismo, arte, etc.
n) Uma descentralização dos serviços eclesiais de modo que sejam muito mais os agentes de pastoral que se integrem a esta missão, levando em consideração as categorias profissionais;
o) Uma formação pastoral dos futuros presbíteros e agentes de pastoral capaz de responder aos novos desafios da cultura urbana.
519. No entanto, tudo o que foi dito anteriormente não tira a importância, de uma renovada pastoral rural que fortaleça os habitantes do campo e seu desenvolvimento econômico e rural, neutralizando as migrações. Deve-se anunciar a eles a Boa Nova para que enriqueçam suas próprias culturas e as relações comunitárias e sociais.
10.7 A serviço da unidade e da fraternidade de nossos povos
520. Na nova situação cultural afirmamos que o projeto do Reino está presente e é possível, e por isso aspiramos a uma América Latina e Caribe unidos, reconciliados e integrados. Esta casa comum é habitada por uma complexa mestiçagem e uma pluralidade étnica e cultural, “na qual o Evangelho tem se transformado (...) no elemento chave de uma síntese dinâmica que, com cores diversas segundo as nações, expressa de todas as formas a identidade dos povos latino-americanos”282.
521. Os desafios que enfrentamos hoje na América Latina e no mundo tem uma característica peculiar. Eles não afetam a todos os nossos povos de maneira similar mas que, para ser enfrentados, requerem uma compreensão global e uma ação conjunta. Cremos que “um fator que pode contribuir notavelmente para superar os urgentes problemas que hoje afetam este continente é a integração latino-americana”283.
522. Por um lado, vai-se configurando uma realidade global que torna possível novos modos de conhecer, aprender e se comunicar, que nos coloca em contato diário com a diversidade de nosso mundo e cria possibilidades para uma união e solidariedade mais estreitas em níveis regionais e em nível mundial. Por outro lado, geram-se novas formas de empobrecimento, exclusão e injustiça. O Continente da esperança deve conseguir sua integração sobre os fundamentos da vida, do amor e da paz.
523. Reconhecemos uma profunda vocação à unidade no “coração” de cada homem, por terem todos a mesma origem e Pai, por levarem em si a imagem e semelhança do próprio Deus em sua comunhão trinitária (cf. Gn 1,26). A Igreja se reconhece nos ensinos do Concílio Vaticano II como “sacramento de unidade do gênero humano”, consciente da vitória pascal de Cristo, mas vivendo no mundo que está ainda sob o poder do pecado, com sua seqüela de contradições, dominações e morte. A partir desta leitura cristã da história, percebe-se a ambigüidade do atual processo de globalização.
524. A Igreja de Deus na América latina e no Caribe é sacramento de comunhão de seus povos. É morada de seus povos; é casa dos pobres de Deus. Convoca e congrega todos em seu mistério de comunhão, sem discriminações nem exclusões por motivo de sexo, raça, condição social e identidade nacional. Quanto mais a Igreja reflete, vive e comunica este dom de inaudita unidade, que encontra na comunhão trinitária sua fonte, modelo e destino, parece mais significativo e incisivo seu operar como sujeito de reconciliação e comunhão na vida de nossos povos. Maria Santíssima é a presença materna indispensável e decisiva na gestação de um povo de filhos e irmãos, de discípulos e missionários de seu Filho.
525. A dignidade de nos reconhecer como uma família de latino-americanos e caribenhos envolve uma experiência singular de proximidade, fraternidade e solidariedade. Não somos um mero continente, apenas um fato geográfico com um mosaico ininteligível de conteúdos. Muito menos somos uma soma de povos e de etnias que se justapõem. Uma e plural, a América Latina é a casa comum, a grande pátria de irmãos e – como afirmou S.S. João Paulo II em Santo Domingo284 – “de alguns povos a quem a mesma geografia, a fé cristã, a língua e a cultura uniram definitivamente no caminho da história”. É, pois, uma unidade que está muito longe de se reduzir a uniformidade, mas que se enriquece com muitas diversidades locais, nacionais e culturais.
526. A III Conferência Geral do Episcopado Latino-americano já se propunha a “retomar com renovado vigor a evangelização da cultura de nossos povos e dos diversos grupos étnicos” para que “a fé evangélica, como base de comunhão, projete-se no sentido de formar uma integração justa nos quadros respectivos de uma nacionalidade, de uma grande pátria latino-americana (...)”285. A IV Conferência em Santo Domingo voltava a propor “o permanente rejuvenescimento do ideal de nossos próceres sobre a Pátria Grande”. A V Conferência em Aparecida expressa sua firme vontade de prosseguir nesse compromisso.
527. Não há, certamente, outra região que conte com tantos fatores de unidade como a América latina – dos quais a vigência da tradição católica é o cimento fundamental de sua construção – mas trata-se de uma unidade comprometida, porque é atravessada por profundas dominações e contradições, e é incapaz de incorporar em si “todos os sangues” e de superar a brecha de estridentes desigualdades e marginalizações. Nossa pátria é grande, mas será realmente “grande” quando a for para todos, com maior justiça. Na verdade, é uma contradição dolorosa que o Continente com o maior número de católicos seja também o de maior iniqüidade social.
528. Nos últimos 20 anos apreciamos os avanços significativos e promissores nos processos e sistemas de integração de nossos países. As relações comerciais e políticas tem se intensificado. Uma comunicação e solidariedade mais estreita entre o Brasil e os países hispano-americanos e os caribenhos é nova. No entanto, há graves bloqueios que travam esses processos. Uma mera integração comercial é frágil e ambígua. Também é frágil e ambígua quando essa integração se reduz a questão de cúpulas políticas e econômicas e não se fundamenta na vida e na participação dos povos. Os atrasos na integração tendem a aprofundar a pobreza e as desigualdades, enquanto as redes de narcotráfico se integram mais das fronteiras. Não obstante que a linguagem política abunde sobre a integração, a dialética da contraposição parece prevalecer sobre o dinamismo da solidariedade e amizade. A unidade não se constrói pela contraposição a inimigos comuns, mas pela realização de uma identidade comum.
10.8 A integração dos indígenas e afro-americanos
529. Como discípulos de Jesus Cristo, encarnado na vida de todos os povos descobrimos e reconhecemos a partir da fé as “sementes do Verbo”286 presentes nas tradições e culturas dos povos indígenas da América Latina. Deles valorizamos seu profundo apreço comunitário pela vida, presente em toda a criação, na existência cotidiana e na milenária experiência religiosa, que dinamiza suas culturas, e que chega a sua plenitude na revelação do verdadeiro rosto de Deus por Jesus Cristo.
530. Como discípulos e missionários a serviço da vida, , acompanhamos os povos indígenas e originários no fortalecimento de suas identidades e organizações próprias, na defesa do território e em uma educação intercultural bilíngüe e na defesa de seus direitos. Comprometemo-nos também a criar consciência na sociedade a respeito da realidade indígena e seus valores, através dos meios de comunicação social e outros espaços de opinião. A partir dos princípios do Evangelho, apoiamos a denúncia de atitudes contrárias à vida plena em nossos povos de origem e nos comprometemos a prosseguir na obra de evangelização dos indígenas, assim como a procurar as aprendizagens educativas e de trabalho com as transformações culturais que isso implica.
531. A Igreja está atenta diante das tentativas de desarraigar a fé católica das comunidades indígenas; com isso elas ficariam em situação de falta de defesa e de confusão frente aos embates das ideologias e de alguns grupos alienantes, e isso atentaria contra o bem das mesmas comunidades.
532. O seguimento de Jesus no Continente passa também pelo reconhecimento dos afro-americanos como um desafio que nos desafia para viver o verdadeiro amor a Deus e ao próximo. Ser discípulos e missionários significa assumir a atitude de compaixão e cuidado do Pai, que se manifesta na ação libertadora de Jesus. “A Igreja defende os autênticos valores culturais de todos os povos, especialmente dos oprimidos, indefesos e marginalizados, diante da força dominadora das estruturas de pecado manifestas na sociedade moderna”287. Conhecer os valores culturais, a história e as tradições dos afro-americanos, entrar em diálogo fraterno e respeitoso com eles, é um passo importante na missão evangelizadora da Igreja. Acompanha-nos nele o testemunho de São Pedro Claver.
533. Por isto, a Igreja denuncia a prática da discriminação e do racismo em suas diferentes expressões, pois ofende no mais profundo a dignidade humana criada a “imagem e semelhança de Deus”. Preocupa-nos que poucos afro-americanos cheguem à educação superior, sem a qual se torna mais difícil seu acesso às esferas de decisão na sociedade. Em sua missão de advogada da justiça e dos pobres a Igreja se faz solidária aos afro-americanos nas reivindicações pela defesa de seus territórios, na afirmação de seus direitos, na cidadania, nos projetos próprios de desenvolvimento e consciência de negritude. A Igreja apóia o diálogo entre cultura negra e fé cristã e suas lutas pela justiça social, e incentiva a participação ativa dos afro-americanos nas ações pastorais de nossas Igrejas e do CELAM. A Igreja com sua pregação, vida sacramental e pastoral precisará ajudar para que as feridas culturais injustamente sofridas na história dos afro-americanos, não absorvam, nem paralisem a partir do seu interior, o dinamismo de sua personalidade humana, de sua identidade étnica, de sua memória cultural, de seu desenvolvimento social nos novos cenários que se apresentam.
10.9 Caminhos de reconciliação e solidariedade
534. A Igreja precisa animar cada povo a transformar sua pátria numa casa de irmãos onde todos tenham uma casa para viver e conviver com dignidade. Essa vocação requer a alegria de querer ser e fazer uma nação, um projeto histórico sugestivo de vida em comum. A Igreja precisa educar e conduzir cada vez mais à reconciliação com Deus e com os irmãos. Precisa somar e não dividir. Importa cicatrizar as feridas, evitar maniqueísmos, perigosas exasperações e polarizações. Os dinamismos de integração digna, justa e eqüitativa no interior de cada um dos países favorece a integração regional e, ao mesmo tempo, é incentivada por ela.
535. É necessário educar e favorecer nossos povos em todos os gestos, obras e caminhos de reconciliação e de amizade social, de cooperação e de integração. A comunhão alcançada no sangue reconciliador de Cristo nos dá a força para sermos construtores de pontes, anunciadores da verdade, bálsamos para as feridas. A reconciliação está no coração da vida cristã. Ela é iniciativa própria de Deus em busca de nossa amizade, que comporta consigo a necessária reconciliação com o irmão. Trata-se de uma reconciliação da qual necessitamos nos diversos âmbitos e em todos e entre todos os países. Esta reconciliação fraterna pressupõe a reconciliação com Deus, fonte única de graça e de perdão, que alcança sua expressão e realização no sacramento da penitência que Deus nos concede através da Igreja.
536. No coração e na vida de nossos povos pulsa um forte sentido de esperança, não obstante as condições de vida que parecem ofuscar toda esperança. Ela se experimenta e se alimenta no presente, graças aos dons e sinais de vida nova que se compartilha; compromete-se na construção de um futuro de maior dignidade e justiça e aspira “os novos céus e nova terra” que Deus nos prometeu em sua morada eterna.
537. A América Latina e o Caribe não devem ser só o Continente da esperança. Além disso, devem também abrir caminhos para a civilização do amor. Assim se expressou o Papa Bento XVI no santuário mariano de Aparecida288: para que nossa casa comum seja um continente da esperança, do amor, da vida e da paz há que se ir, como bons samaritanos ao encontro das necessidades dos pobres e dos que sofrem e criar “as estruturas justas que são uma condição sem a qual não é possível uma ordem justa na sociedade...” Estas estruturas, continua o Papa, “não nascem nem funcionam sem um consenso moral da sociedade sobre os valores fundamentais e sobre a necessidade de viver estes valores com as necessárias renúncias, inclusive contra o interesse pessoal”, e “onde Deus está ausente (...) estes valores não se mostram com toda sua força nem se produz um consenso sobre eles”289. Essas estruturas justas nascem e funcionam quando a sociedade percebe que o homem e a mulher, criados a imagem e semelhança de Deus, possuem uma dignidade inviolável, a serviço da qual terão de conceber e atuar os valores fundamentais que regem a convivência humana. Este consenso moral e mudança de estruturas importam para diminuir a dolorosa iniqüidade que hoje existe em nosso continente, entre outras coisas através de políticas públicas e gastos sociais bem orientados, assim como do controle de lucros desproporcionais de grandes empresas. A Igreja estimula e propicia o exercício de uma “imaginação da caridade” que permita soluções eficazes.
538. Todas as autênticas transformações se forjam no coração das pessoas e se irradiam em todas as dimensões de sua existência e convivência. Não há novas estruturas se não há homens novos e mulheres novas que mobilizem e façam convergir nos povos ideais e poderosas energias morais e religiosas. Formando discípulos e missionários, a Igreja dá resposta a esta exigência.
539. A Igreja estimula e favorece a reconstrução da pessoa e de seus vínculos de pertencimento e convivência, a partir de um dinamismo de amizade, gratuidade e comunhão. Deste modo, neutralizam-se os processos de desintegração e atomização sociais. Para isso, é necessário aplicar o princípio da subsidiariedade em todos os níveis e estruturas da organização social. Na verdade, o Estado e o mercado não satisfazem nem podem satisfazer todas as necessidades humanas. Cabe, portanto, apreciar e estimular os voluntariados sociais, as diversas formas de livre auto-organização e participação populares e as obras de caridade, educativas, hospitalares, de cooperação no trabalho e outras promovidas pela Igreja, que respondem adequadamente a estas necessidades.
540. Os discípulos e missionários de Cristo promovem uma cultura do compartilhar em todos os níveis, em contraposição à cultura dominante de acumulação egoísta, assumindo com seriedade a virtude da pobreza como estilo de vida sóbrio para ir ao encontro e ajudar as necessidades dos irmãos que vivem na indigência.
541. Compete também à Igreja colaborar na consolidação das frágeis democracias, no positivo processo de democratização na América latina e no Caribe, ainda que existam atualmente graves desafios e ameaças de desvios autoritários. Urge educar para a paz, dar seriedade e credibilidade à continuidade de nossas instituições civis, defender e promover os direitos humanos, proteger em especial a liberdade religiosa e cooperar para despertar os maiores consensos nacionais.
542. A paz é um bem valioso, mas precário que todos devemos cuidar, educar e promover em nosso continente. Como sabemos, a paz não se reduz à ausência de guerras, nem à exclusão de armas nucleares em nosso espaço comum. Estas são conquistas já significativas, mas devemos promover a geração de uma “cultura de paz” que seja fruto de um desenvolvimento sustentável, eqüitativo e respeitoso da criação (“o desenvolvimento é o novo nome da paz” dizia Paulo VI) e que nos permita enfrentar conjuntamente os ataques do narcotráfico e do consumo de drogas, do terrorismo e das muitas formas de violência que hoje imperam em nossa sociedade. A Igreja, sacramento de reconciliação e de paz, deseja que os discípulos e missionários de Cristo sejam também, ali mesmo onde se encontrem, “construtores de paz” entre os povos e nações de nosso Continente. A Igreja é chamada a ser uma escola permanente de verdade e de justiça, de perdão e de reconciliação para construir uma paz autêntica.
543. Uma autêntica evangelização de nossos povos envolve assumir plenamente a radicalidade do amor cristão, que se concretiza no seguimento de Cristo na Cruz; no padecer por Cristo por causa da justiça; no perdão e no amor aos inimigos. Este amor supera o amor humano e participa no amor divino, único eixo cultural capaz de construir uma cultura da vida. No Deus Trindade a diversidade de Pessoas não gera violência e conflito, mas é a mesma fonte de amor e da vida. Uma evangelização que coloca a Redenção no centro, nascida de um amor crucificado, é capaz de purificar as estruturas da sociedade violenta e gerar novas estruturas. A radicalidade da violência só se resolve com a radicalidade do amor redentor. Evangelizar sobre o amor de plena doação como solução ao conflito deve ser o eixo cultural “radical” de uma nova sociedade. Só assim o Continente da esperança pode chegar a se tornar verdadeiramente o Continente do amor.
544. Reafirmamos a importância do CELAM e reconhecemos que tem sido uma instância profética para a unidade dos povos latino-americanos e caribenhos, e tem demonstrado a viabilidade de sua cooperação e solidariedade a partir da comunhão eclesial. Por isso nos comprometemos a continuar fortalecendo seu serviço na colaboração colegial dos Bispos e no caminho de realização da identidade eclesial latino-americana e caribenha. Convidamos aos Episcopados de países envolvidos nos diferentes sistemas de integração sub-regionais, incluídos os da bacia Amazônica, a estreitar vínculos de reflexão e de cooperação. Também estimulamos que continue o fortalecimento de vínculos para a relação entre o Episcopado latino-americano e os Episcopados dos Estados Unidos e Canadá à luz da Exortação Apostólica “Ecclesia in América”, assim como com os Episcopados europeus.
545. Conscientes de que a missão evangelizadora não pode seguir separada da solidariedade com os pobres e sua promoção integral, e sabendo que existem comunidades eclesiais que carecem dos meios necessários, é imperativo ajuda-las, imitando as primeiras comunidades cristãs, para que, de verdade, se sintam amadas. É imperativo, portanto, a criação de um fundo de solidariedade entre as Igrejas da América Latina e do Caribe que esteja a serviço das iniciativas pastorais próprias.
546. Ao enfrentar tão graves desafios nos estimulam as palavras do Santo padre: “Não há dúvida de que as condições para estabelecer uma paz verdadeira são a restauração da justiça, da reconciliação e do perdão. Desta conscientização, nasce a vontade de transformar também as estruturas injustas para estabelecer o respeito da dignidade do homem, criado à imagem e semelhança de Deus... Como tive a ocasião de afirmar, a Igreja não tem como tarefa própria empreender uma batalha política, no entanto, também não pode, nem deve ficar à margem da luta pela justiça”290.
CONCLUSÃO
547. “Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós...” (At 15,28). A experiência da comunidade apostólica primitiva mostra a própria natureza da Igreja enquanto mistério de comunhão com Cristo no Espírito Santo. S.S. Bento XVI nos indicou este “método” original em sua homilia em Aparecida. Ao concluir a V Conferência Geral do Episcopado Latino-americana e do Caribe constatamos que isto é, pela graça de Deus, o que temos experimentado. Em 19 jornadas de intensa oração, intercâmbios e reflexão, dedicação e cansaço, nossa solicitude pastoral tomou forma no documento final, que foi adquirindo cada vez maior densidade e maturidade. O Espírito de Deus foi nos conduzindo, suave mas firmemente, para a meta.
548. Esta V Conferência, recordando o mandato de ir e fazer discípulos (cf. Mt 28,20), deseja despertar a Igreja na América Latina e no Caribe para um grande impulso missionário. Não podemos deixar de aproveitar esta hora de graça. Necessitamos de um novo Pentecostes! Necessitamos sair ao encontro das pessoas, das famílias, das comunidades e dos povos para lhes comunicar e compartilhar o dom do encontro com Cristo, que tem preenchido nossas vidas de “sentido”, de verdade e de amor, de alegria e de esperança! Não podemos ficar tranqüilos em espera passiva em nossos templos, mas é imperativo ir em todas as direções para proclamar que o mal e a morte não tem a última palavra, que o amor é mais forte, que fomos libertos e salvos pela vitória pascal do Senhor da história, que Ele nos convoca na Igreja, e quer multiplicar o número de seus discípulos na construção de seu Reino em nosso Continente! Somos testemunhas e missionários: nas grandes cidades e nos campos, nas montanhas e florestas de nossa América, em todos os ambientes da convivência social, nos mais diversos “lugares” da vida pública das nações, nas situações extremas da existência, assumindo ad gentes nossa solicitude pela missão universal da Igreja.
549. Para nos converter em uma Igreja cheia de ímpeto e audácia evangelizadora, temos que ser de novo evangelizados e fiéis discípulos. Conscientes de nossa responsabilidade pelos batizados que deixaram essa graça de participação no mistério pascal e de incorporação no Corpo de Cristo sob uma capa de indiferença e esquecimento, é necessário cuidar do tesouro da religiosidade popular de nossos povos para que nela resplandeça cada vez mais “a pérola preciosa” que é Jesus Cristo e seja sempre novamente evangelizada na fé da Igreja e por sua vida sacramental. É preciso fortalecer a fé “para encarar sérios desafios, pois estão em jogo o desenvolvimento harmônico da sociedade e da identidade católica de seus povos”291. Não temos de dar nada por pressuposto e descontado. Todos os batizados são chamados a “recomeçar a partir de Cristo”, a reconhecer e seguir sua Presença com a mesma realidade e novidade, o mesmo poder de afeto, persuasão e esperança, que teve seu encontro com os primeiros discípulos nas margens do Jordão, há 2000 anos, e com os “João Diego” do Novo Mundo. Só graças a esse encontro e seguimento, que se converte em familiaridade e comunhão, transbordante de gratidão e alegria, somos resgatados de nossa consciência isolada e saímos para comunicar a todos a vida verdadeira, a felicidade e a esperança que nos tem sido dada a experimentar e nos alegrar.
550. É o próprio Papa Bento XVI, quem nos convida a “uma missão evangelizadora que convoque todas as forças vivas deste imenso rebanho” que é povo de Deus na América Latina e no Caribe: “sacerdotes, religiosos, religiosas e leigos que se doam, muitas vezes com imensas dificuldades, para a difusão da verdade evangélica”. É um afã e anúncio missionários que precisa passar de pessoa a pessoa, de casa em casa, de comunidade a comunidade. “Neste esforço evangelizador – prossegue o Santo padre – a comunidade eclesial se destaca pelas iniciativas pastorais, ao enviar, sobretudo entre as casas das periferias urbanas e do interior, seus missionários, leigos e religiosos, procurando dialogar com todos em espírito de compreensão e de delicada caridade”. Essa missão evangelizadora abraça com o amor de Deus a todos e especialmente aos pobres e aos que sofrem. Por isso, não pode se separar da solidariedade com os necessitados e de sua promoção humana integral: “Mas se as pessoas encontradas estão em uma situação de pobreza – diz-nos ainda o Papa – é necessário ajuda-las, como faziam as primeiras comunidades cristãs, praticando a solidariedade, para que se sintam amadas de verdade. O povo pobre das periferias urbanas ou do campo necessitam sentir a proximidade da Igreja, seja no socorro de suas necessidades mais urgentes, como também na defesa de seus direitos e na promoção de uma sociedade fundamentada na justiça e na paz. Os pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho e um Bispo, modelado segundo a imagem do Bom Pastor, deve estar particularmente atento para oferecer o divino bálsamo da fé, sem descuidar do ‘pão material’”.
551. Esperamos que este despertar missionário, na forma de uma Missão Continental, cujas linhas fundamentais foram examinadas por nossa Conferência e que esperamos sejam portadoras de sua riqueza de ensinamentos, orientações e prioridades, seja ainda mais concretamente considerado durante a próxima Assembléia Plenária do CELAM em Havana. Requerirá a decidida colaboração das Conferências Episcopais e de cada diocese em particular. Procurará colocar a Igreja em estado permanente de missão. Levemos nossos navios mar adentro, com o sopro potente do Espírito Santo, sem medo das tormentas, seguros de que a Providência de Deus nos proporcionará grandes surpresas.
552. Recobremos, portanto, o “fervor espiritual”. Conservemos a doce e confortadora alegria de evangelizar, inclusive quando é necessário semear entre lágrimas. Façamo-lo, como João, o Batista, como Pedro e Paulo, como os demais Apóstolos, como essa multidão de admiráveis evangelizadores que se sucederam ao longo da história da Igreja, com um ímpeto interior que ninguém, nem nada seja capaz de extinguir. Seja esta a maior alegria de nossas vidas entregues. E que o mundo atual – que procura ás vezes com angústia, às vezes com esperança – possa assim receber a Boa Nova, não através de evangelizadores tristes e desalentados, impacientes e ansiosos, mas através de ministros do Evangelho, cuja vida irradia o fervor de quem recebeu a alegria de Cristo e aceitam consagrar sua vida á tarefa de anunciar o Reino de Deus e de implantar a Igreja no mundo”292. Recuperemos o valor e a audácia apostólicos.
553. Ajude-nos a companhia sempre próxima, cheia de compreensão e ternura de Maria Santíssima. Que nos mostre o fruto bendito de seu ventre e nos ensine a responder como ela fez no mistério da anunciação e encarnação. Que nos ensine a sair de nós mesmos no caminho de sacrifício, de amor e serviço, como fez na visita a sua prima Isabel, para que, peregrinos no caminho, cantemos as maravilhas que Deus tem feito em nós, conforme a sua promessa.
554. Guiados por Maria, fixamos os olhos em Jesus Cristo, autor e consumador da fé e dizemos a Ele com o Sucessor de Pedro:
“Fica conosco, pois cai a tarde e o dia já se declina” (Lc 24,29).
Fica conosco, Senhor, acompanha-nos ainda que nem sempre tenhamos sabido reconhecer-te.
Fica conosco, porque ao redor de nós as mais densas sombras vão se fazendo, e Tu és a Luz; em nossos corações se insinua a falta de esperança, e tu os faz arder com a certeza da Páscoa. Estamos cansados do caminho, mas tu nos confortas na fração do pão para anunciar a nossos irmãos que na verdade tu tens ressuscitado e que nos tem dado a missão de ser testemunhas de tua ressurreição.
Fica conosco, Senhor, quando ao redor de nossa fé católica surgem as névoas da dúvida, do cansaço ou da dificuldade: tu, que és a própria Verdade como revelador do Pai, ilumina nossas mentes com tua Palavra; ajuda-nos a sentir a beleza de crer em ti.
Fica em nossas famílias, ilumina-as em suas dúvidas, sustenta-as em suas dificuldades, consola-as em seus sofrimentos e no cansaço de cada dia, quando ao redor delas se acumulam sombras que ameaçam sua unidade e sua natureza. Tu que és a Vida, fica em nossos lares, para que continuem sendo ninhos onde nasça a vida humana abundante e generosamente, onde se acolha, se ame, se respeite a vida desde a sua concepção até seu término natural.
Fica, Senhor, com aqueles que em nossas sociedade são os mais vulneráveis; fica com os pobres e humildes, com os indígenas e afro-americanos, que nem sempre encontram espaços e apoio para expressar a riqueza de sua cultura e a sabedoria de sua identidade. Fica, Senhor, com nossas crianças e com nossos jovens, que são a esperança e a riqueza de nosso Continente, protege-os de tantas armadilhas que atentam contra sua inocência e contra suas legítimas esperanças. Oh bom Pastor, fica com nossos anciãos e com nossos enfermos! Fortalece a todos em sua fé para que sejam teus discípulos e missionários!293
ÍNDICE GERAL
INTRODUÇÃO
PRIMEIRA PARTE: A VIDA DE NOSSOS POVOS HOJE
CAPÍTULO 1: OS DISCÍPULOS MISSIONÁRIOS
1.1 Ação de graças a Deus
1.2 A alegria de ser discípulos e missionários de Jesus Cristo
1.3 A missão da Igreja é evangelizar
CAPÍTULO 2: OLHAR DOS DISCÍPULOS MISSIONÁRIOS SOBRE A REALIDADE
2.1 A realidade que nos desafia como discípulos e missionários
2.1.1 Situação sócio-cultural
2.1.2 Situação econômica
2.1.3 Situação sócio-política
2.1.4 Biodiversidade, ecologia, Amazônia e Antártida
2.1.5 Presença dos povos indígenas e afro-americanos na Igreja
2.2 Situação de nossa Igreja nesta hora histórica de desafios
SEGUNDA PARTE: A VIDA DE JESUS CRISTO NOS DISCÍPULOS MISSIONÁRIOS
CAPÍTULO 3: A ALEGRIA DE SER DISCÍPULOS MISSIONÁRIOS PARA ANUNCIAR O EVANGELHO DE JESUS CRISTO
3.1 A boa nova da dignidade humana
3.2 A boa nova da vida
3.3 A boa nova da família
3.4 A boa nova da atividade humana:
3.4.1 O trabalho
3.4.2 A ciência e a tecnologia
3.5 A boa nova do destino universal dos bens e da ecologia
3.6 O Continente da esperança e do amor
CAPÍTULO 4: A VOCAÇÃO DOS DISCÍPULOS MISSIONÁRIOS À SANTIDADE
4.1 Chamados para o seguimento de Jesus Cristo
4.2 Parecidos com o Mestre
4.3 Enviados para anunciar o Evangelho do Reino de vida
4.4 Animados pelo Espírito Santo
CAPÍTULO 5: A COMUNHÃO DOS DISCÍPULOS MISSIONÁRIOS NA IGREJA
5.1 Chamados a viver em comunhão
5.2 Lugares eclesiais para a comunhão
5.2.1 A Diocese, lugar privilegiado da comunhão
5.2.2 A paróquia, comunidade de comunidade
5.2.3 Comunidades Eclesiais de Base e pequenas comunidades
5.2.4 As Conferências Episcopais e a comunhão entre as Igrejas
5.3 Discípulos missionários com vocações específicas
5.3.1 Os bispos, discípulos missionários de Jesus, Sumo Sacerdote
5.3.2 Os presbíteros, discípulos missionários de Jesus, Bom Pastor
5.3.2.1 Identidade e missão dos presbíteros
5.3.2.2 Os párocos, animadores de uma comunidade de discípulos missionários
5.3.3 Os diáconos permanente, discípulos missionários de Jesus Servidor
5.3.4 Os fiéis leigos e leigas, discípulos missionários de Jesus, Luz do mundo
5.3.5 Os consagrados e consagradas, discípulos missionários de Jesus, Testemunha do Pai
5.4 Aqueles que tem deixado a Igreja para se unir a outros grupos religiosos
5.5 Diálogo ecumênico e interreligioso
5.5.1 Diálogo ecumênico para que o mundo creia
5.5.2 Relação com o judaísmo e diálogo interreligioso
CAPÍTULO 6: O CAMINHO DE FORMAÇÃO DOS DISCÍPULOS MISSIONÁRIOS
6.1 Uma espiritualidade trinitária do encontro com Jesus Cristo
6.1.1 O encontro com Jesus Cristo
6.1.2 Lugares de encontro com Jesus Cristo
6.1.3 A piedade popular como espaço de encontro com Jesus Cristo
6.1.4 Maria, discípula e missionária
6.1.5 Os apóstolos e os santos
6.2 O processo de formação dos discípulos missionários
6.2.1 Aspectos do processo
6.2.2 Critérios gerais
6.2.2.1 Uma formação integral, kerygmática e permanente
6.2.2.2 Uma formação atenta a dimensões diversas
6.2.2.3 Uma formação respeitosa dos processos
6.2.2.4 Uma formação que contempla o acompanhamento dos discípulos
6.2.2.5 Uma formação na espiritualidade da ação missionária
6.3 Iniciação à vida cristã e á catequese permanente
6.3.1 Iniciação à vida cristã
6.3.2 Propostas para a iniciação cristã
6.3.3 catequese permanente
6.4 Lugares de formação para os discípulos missionários
6.4.1 A Família, primeira escola da fé
6.4.2 As Paróquias
6.4.3 Pequenas comunidades eclesiais
6.4.4 Os Movimentos eclesiais e as Novas comunidades
6.4.5 Os Seminários e as Casas de formação religiosa
6.4.6 A Educação Católica
6.4.6.1 Os centros educativos católicos
6.4.6.2 As universidades e centros superiores de educação católica
TERCEIRA PARTE
A VIDA DE JESUS CRISTO PARA NOSSOS POVOS
CAPÍTULO 7: A MISSÃO DOS DISCÍPULOS A SERVIÇO DA VIDA PLENA
7.1 Viver e comunicar a vida nova em Cristo a nossos povos
7.1.1 Jesus a serviço da vida
7.1.2 Várias dimensões da vida em Cristo
7.1.3 A serviço de uma vida plena para todos
7.1.4 Uma missão para comunicar vida
7.2 Conversão pastoral e renovação missionária das comunidades
7.3 Nosso compromisso com a missão ad gentes
CAPÍTULO 8: REINO DE DEUS E PROMOÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA
8.1 Reino de Deus, justiça social e caridade cristã
8.2 A dignidade humana
8.3 A opção preferencial pelos pobres e excluídos
8.4 Uma renovada pastoral social para a promoção humana integral
8.5 Globalização da solidariedade e justiça internacional
8.6 Rostos sofredores que causam dor em nós
8.6.1 Pessoas que vivem na rua das grandes cidades
8.6.2 Migrantes
8.6.3 Enfermos
8.6.4 Dependentes de drogas
8.6.5 Detidos em prisões
CAPÍTULO 9: FAMÍLIAS, PESSOAS E VIDA
9.1 O matrimônio e a família
9.2 As crianças
9.3 Os adolescentes e jovens
9.4 O bem estar dos idosos
9.5 A dignidade e participação das mulheres
9.6 A responsabilidade do homem e pai de família
9.7 9.7 A cultura da vida e sua defesa
9.8 9.8 O cuidado com o meio ambiente
CAPÍTULO 10: NOSSOS POVOS E A CULTURA
10.1 A cultura e sua evangelização
10.2 A educação como bem público
10.3 Pastoral da Comunicação Social
10.4 Novos lugares e centros de decisão
10.5 Discípulos e missionários na vida pública
10.6 A Pastoral Urbana
10.7 A serviço da unidade e da fraternidade de nossos povos
10.8 A integração dos indígenas e afro-americanos
10.9 Caminhos de reconciliação e de solidariedade
SIGLAS
CONCLUSÃO
SIGLAS
AA Apostolicam Actuositatem
AG Ad Gentes
CCE Catecismo de la Iglesia Católica
CDSI Compêndio da Doutrina Social da Igreja
CIC Código de Direito Canônico
ChD Decreto Christus Dominus
ChL Christifidelis Laici
DCE Deus Caritas est
DI Discurso Inaugural de S.S. Bento XVI na V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano
DP Documento de Puebla
DV Dei Verbum
EAm Exortação Apostólica Ecclesia in América
ECE Ex Corde Ecclesiae
EMCC Instrução Erga Migrantes Caritas Christi
EM Evangelii Nuntiandi
EV Evangelium Vitae
FC Familiaris Consortio
FR Fides et Ratio
GE Gravissimum Educationis
GS Gaudium et Spes
HV Humanae vitae
IM Decreto Inter Mirifica
LE Laborem Exercens
LG Lúmen Gentium
NAe Declaração Nostra Aetate
NMI Novo millenio ineunte
OT Optatam Totius
PC Perfectae Caritatis
PDV Pastores Dabo Vobis
PG Pastores gregis
PP Populorum Progressio
PO Presbyterorum Ordinis
RM Redemptoris Missio
RVM Rosarium Virginis Mariae
SC Sacrosanctum Concilium
SCa Sacramentum caritatis
SD Documento de Santo Domingo
SRS Sollicitudo Rei Socialis
TMA Tertio millenio adveniente
UR Unitatis Redintegratio
UUS Ut unum sint
VC Vita consecrata